Foucault: Saber é poder!
As relações de saber e poder (ascendentes e descendentes) analisadas nos contundentes trabalhos de Michel Foucault, nos anos 1970, não são mais restritas ou atrofiadas em campos específicos da Sociologia, do Direito ou da Criminologia. Essas relações de poder e saber, articuladas por análises histórico-políticas das forças em luta, reviraram os tradicionais estudos modernos escorados na filosofia política e na economia política.
“[…] poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.” (FOUCAULT, 2001, p. 27)
A noção de sociedade trazida por Foucault implodiu os já consagrados conhecimentos compartimentados, a suposta oposição entre capitalismo e socialismo, ou democracia, ditadura e fascismo. Desestruturou o sólido edifício teórico, provocou espasmos nas concepções inter, pluri, multi ou transdisciplinares e abriu novas problematizações.
A história-política do autor, por sua vez, liberta-se de utopias, e trata o presente por resistências, as ativas e as reativas. Considerando a política uma guerra continuada por outros meios, uma outra guerra permanente.
Foucault, que declaradamente se diz nietzschiano, reforça a ideia da cultura e da moral regendo a vida do homem. Enquanto uma domestica, a outra envenena a vida. Baseado no mesmo conceito de genealogia do filósofo alemão, o francês entende que o indivíduo aprende a romper, demolir, desconstruir, e questionar as verdades que lhe são imputadas pelo sistema ou pelas instituições.
A partir de então, o ser humano deixa a subjetividade de lado, refletindo e deliberando sob um processo de reconstrução de ideias e valores, reescreve as verdades sob uma outra perspectiva, ou, melhor dito, sob a sua perspectiva.
Para ele não existe o poder, mas somente relações de poder, que são manifestadas através de mecanismos que atuam como uma força, que vigia, coage, disciplina e controla os indivíduos. Segundo ele, na medida em que a sociedade foi sofrendo modificações em suas relações sócio-políticas e econômicas, também foram sendo produzidas novas relações de poder, sempre se adequando às necessidades do poder dominante.
Este processo atinge um grau de eficiência, complexidade e simplicidade simultaneamente, que o poder parece adquirir vida própria, como se prescindisse dos indivíduos. Assim, o poder parece simplesmente funcionar, independente desses indivíduos. Através de todo um aparato ideológico, burocrático e bélico, esse poder se exerce, coagindo e fazendo com que os indivíduos se submetam, pois, apesar de o poder parecer invisível, adquire forma na medida em que os indivíduos se transformam numa espécie de correia de transmissão e de reprodução, disseminando esse poder em todas as esferas sociais.
Portanto, para que o poder funcione, o discurso e a produção da verdade são ferramentas que conseguem imprimir um controle que ocorre o tempo todo, em qualquer lugar. Nas palavras do autor, o poder:
“diz respeito a toda uma tecnologia de adestramento humano, da vigilância do comportamento e da individualização dos elementos do corpo social”. (FOUCAULT, 2003, p. XVI)
O autor insiste na importância de se conscientizar sobre o poder e que ele transita e que um indivíduo não pode incorporá-lo, por que o poder só funciona em cadeia e em círculo. Para o filósofo:
Falo da verdade, procuro saber como se atam, em torno dos discursos considerados como verdadeiros, os efeitos de poder específicos, mas meu verdadeiro problema, no fundo, é o de forjar instrumentos de análise, de ação política e de intervenção política sobre a realidade que nos é contemporânea e sobre nós mesmos. (FOUCAULT, 2003, p. 240)
Não se deve, acho eu, conceber o indivíduo como uma espécie de núcleo elementar, átomo primitivo, matéria múltipla e muda na qual viria aplicar-se, contra a qual viria bater o poder, que submeteria os indivíduos ou os quebrantaria. Na realidade, o que faz que um corpo, gestos, discursos, desejos sejam identificados e constituídos como indivíduos, é precisamente isso um dos efeitos primeiros do poder.
(FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 35. )
Segundo este raciocínio, devemos compreender que a lei é uma verdade ‘construída’ de acordo com as necessidades do poder. E esse poder precisa de uma delimitação formal, não importa em qual tipo de sociedade, ele precisa ser justificado de forma abstrata o suficiente para que seja introjetado psicologicamente, a nível macro social, como uma verdade universal.
Dessa necessidade, desenvolvem-se as regras do direito, criando, os elementos necessários para a produção, a transmissão e a oficialização dessas ‘verdades’. O poder precisa da produção de discursos de verdade, pois assim, estabelece relações múltiplas, caracterizando e constituindo o corpo social e, para que não desmorone, necessita de uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento de um discurso sólido e convincente.
É por esse motivo, segundo ele, que se faz necessário analisar as formações discursivas da seguinte forma:
[…] deve compará-las, opô-las umas às outras na simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo calendário, relacioná-las no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral. (FOUCAULT, 2004, p. 177.)
A partir dessa reflexão, busca-se elementos que favoreçam a interpretação dos discursos, guiando a contemplação à forma como os sujeitos se colocam nas suas falas, como por exemplo, de quais lugares falaram, porque, em que circunstâncias e para quem.
Analisar as condições de produção dos discursos, a oposição, a comparação e a relação dos discursos, é uma prática presente a fim de se procurar uma melhor forma de entendimento e de leitura da realidade prática em relação à uma instituição ou um indivíduo pesquisado.
Diante desse processo, o verdadeiro discurso por trás do discurso pode ser esclarecido, ou como diz o autor:
“[…] trata-se de reconstituir um outro discurso, de descobrir a palavra muda, murmurante, inesgotável, que anima do interior a voz que escutamos.” (FOUCAULT, 2004B, p. 31. )
[…] reconhecer que elas talvez não sejam, afinal de contas, o que se acreditava que fossem à primeira vista. Enfim, que exigem uma teoria; e que essa teoria não pode ser elaborada sem que apareça, em sua pureza não sintética, o campo dos fatos do discurso a partir do qual são construídas. (FOUCAULT, 2004B, p. 29. )
Foucault alega também, a relação de saber e poder gera desigualdade e somente com o passar do tempo, lentamente e quase sempre tardiamente, aflora a versão do mais fraco, do oprimido, ou seja, o processo de liberdade, quase sempre é um processo que passa pelo viés da dor, da perda, talvez até da humilhação.
“[…] e é assim que nasce a diferença dos valores; classes dominam classes e é assim que nasce a ideia de liberdade […] (FOUCAULT, 2003B, p. 25).