O Poder do Discurso
*Por Valter Peixoto Neto
Nietzsche afirmava que a história em si não é nociva à cultura, mas seu uso moderno o é. Para o filósofo, o pensamento histórico deveria ser aprofundado, mas em uma direção oposta. Já em 1880, o autor identificava como o grande problema cultural e político do mundo moderno a crítica e a revisão dos valores morais cristãos que fundamentam a visão de mundo do homem ocidental.
Problematizar o conhecimento é pensar que tipo de vida e de cultura ele fomenta, pois para Nietzsche, o homem é suscetível ao sofrimento e a opressão, e só essa reflexão pode gerar um olhar crítico capaz de quebrar o encantamento das tradições e instituições, questionar hábitos e padrões e reabrir a vida para novas possibilidades de existência.
O modo como a moral interfere nas relações humanas moldando no indivíduo a aceitação de certos valores, estabelece o modo como este passa a encarar a si mesmo e a realidade a sua volta. Para romper com a moral é necessário fazer um estudo histórico sobre ela, verificar quais os elementos que possibilitaram a sua aceitação e quais foram as motivações que levaram os indivíduos a perpetuarem certos princípios como morais. “Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão.”
Em sua obra Genealogia da moral, são questionados os conceitos de bom e mau, bom e ruim. Sob esses signos, a construção de alicerces morais foi se propagando sem que se notasse que essas construções linguísticas já abrigaram sentidos opostos aos difundidos pela moralidade. Moralidade esta que pode muito bem ser interpretada como utilidade e hábito, ou seja, o que era útil para a comunidade era convenientemente alimentado como hábito e desse modo passava a ser o bom. Entretanto, essa determinação partia apenas de alguns indivíduos: os nobres. É assim que surge a figura do nobre como a indicação de distorções históricas para a criação e propagação de valores.
O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem “isto é isto”, marca cada coisa e acontecimento com um som, como que se apropriando assim das coisas.
Da perspectiva do cordeiro, mau é quem causa temor e bom deve ser aquele de quem não há nada a temer; numa palavra, mau é o forte e bom o fraco. E da perspectiva da ave de rapina, bom seria quem quer lutar e ruim quem não é digno de participar dela; numa palavra, bom é o forte e ruim é o fraco.
Com esse movimento, demonstra-se o quanto a influência histórica é importante para as formações conceituais de uma sociedade e busca não apenas destruir uma moral alicerçada em valores questionáveis, mas atribuir aos indivíduos o reconhecimento de que são eles os grandes mentores morais.
Há aqueles que fixam verdades e valores intocados para favorecer algo ou alguém, promovidos por um status da verdade. É nesse ponto que a crítica de Nietzsche começa a convergir para a busca por uma mudança. O pensador mostra que valores não somente são mutáveis e determinados por vontades, como identifica nessa suposta verdade uma ambição coletiva que demonstra o conflito entre certas vontades.
Para ele, a ilustração histórica é importante para acentuar a percepção da mutabilidade dos costumes e de crenças adotados socialmente, e que ao fazê-la, os indivíduos devem estar abertos a uma análise que busque entende-los como um fragmento, uma perspectiva, apontando mais uma vez para a necessidade de mudanças.
Para Michel Foucault, as relações de saber e poder (ascendentes e descendentes) não são mais restritas ou atrofiadas em campos específicos da Sociologia, do Direito ou da Criminologia. Essas relações de poder e saber, articuladas por análises histórico- políticas das forças em luta, reviraram os tradicionais estudos modernos escorados na filosofia política e na economia política. “[…] poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder.”
O autor reforça a ideia da cultura e da moral regendo a vida do homem. Enquanto uma domestica, a outra envenena a vida. Baseado no mesmo conceito de genealogia do filósofo alemão, o francês entende que o indivíduo aprende a romper, demolir, desconstruir e questionar as verdades que lhe são imputadas pelo sistema ou pelas instituições.
A partir de então, o ser humano deixa a subjetividade de lado, refletindo e deliberando sob um processo de reconstrução de ideias e valores, reescreve as verdades sob outra perspectiva, ou, melhor dito, sob a sua perspectiva. Sobre poder, ele alega que “diz respeito a toda uma tecnologia de adestramento humano, da vigilância do comportamento e da individualização dos elementos do corpo social”.
Segundo este raciocínio, deve-se compreender que a lei é uma verdade “construída” de acordo com as necessidades do poder vigente. O poder precisa da produção de discursos de verdade para se sustentar, pois assim, estabelece relações múltiplas, caracterizando e constituindo o corpo social e, para que não desmorone, necessita de uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento de um discurso sólido e convincente. É por esse motivo, segundo Foucault, que se faz necessário analisar as formações discursivas da seguinte forma:
[…] deve compará-las, opô-las umas às outras na simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo calendário, relacioná-las no que podem ter de específico com as práticas não discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral.
A partir dessa reflexão, buscam-se elementos que favoreçam a interpretação dos discursos, pois todos eles são ditos por alguém e para alguém. Deve-se analisar as condições de produção dos mesmos, sua a oposição, comparação e a relação entre eles a fim de procurar uma melhor forma de entendimento e de leitura da realidade prática em relação à uma instituição ou um indivíduo pesquisado.
Tendo em mãos os conceitos desses dois grandes pensadores, que de certa forma falam a mesma língua, vale analisar com novos olhos os discursos do então presidente dos EUA, George W. Bush, pós 11 de setembro, dia esse considerado como o grande marco do mundo moderno.
Sobre a primeira menção de uma guerra contra o terrorismo, diz: “nossos amigos e aliados se uniram com todos que querem a paz e a segurança no mundo, e nós estamos unidos para vencer a guerra contra o terrorismo”. Notória a falta de especificidade e critérios em que se dará essa guerra contra o terrorismo, mas com promessas de vingança. Em seu primeiro discurso em cadeia nacional:
A América foi alvo de ataques porque somos a luz que baliza a liberdade e a oportunidade no mundo. E ninguém vai impedir que essa luz continue brilhando.[…] Essa não é, no entanto, apenas uma guerra americana. E o que está em questão não é apenas a liberdade americana. Essa é uma luta da civilização. Essa é uma guerra de todos que acreditam no progresso e no pluralismo, tolerância e liberdade.
No dia 20 de setembro de 2001, fez um novo discurso onde apresentou ao Congresso americano a posição oficial da Casa Branca. Bush começou sua fala enaltecendo a coragem dos passageiros do vôo United Airlines 93 que, ao que tudo indica, confrontaram os sequestradores evitando que a quarta aeronave atingisse um alvo em Washington. Ressaltou o caráter cosmopolita das vítimas do WTC que no momento dos ataques abrigava pessoas de cerca de oitenta nacionalidades diferentes, dando margem a um caráter de agressão mundial e não apenas um ataque contra os EUA. “Essa não é, no entanto, apenas uma guerra Americana. O que está em questão não é apenas a liberdade americana. Essa é uma guerra da civilização”.
Durante esse discurso, o presidente assumiu o compromisso de levar até a Justiça os responsáveis pelos atos de terrorismo ou levar a justiça aos inimigos, transformando a intervenção militar em uma espécie de atitude messiânica. Na perspectiva da Casa Branca, “os inimigos da liberdade” cometeram um ato de guerra contra os EUA. “Cada nação em cada região agora tem que tomar uma decisão: Ou vocês estão conosco ou vocês estão com os terroristas”.
Sua fala é um caso claro da dominação do discurso em benefício próprio. Ao santificar a si mesmo, ele legitima toda e qualquer ação que vier a fazer no futuro e coloca em dúvida toda e qualquer nação que pense em se opor, contaminando um possível debate com conceito de “bom” e “mau” previamente posto. Sinalizando que ignoraria até mesmo uma possível proibição da ONU de invasão ao Oriente Médio.