Crises mundiais: Cadeias Globais de Valor e de Fretes

Crise da globalização

A desconfiança mundial com economias liberais se deu pela crise que se originou nos EUA em 2008 e pelo uso mundial do dólar e o peso econômico do país, logo se expandiu para o mundo todo. A pandemia foi apenas o estopim de algo que já vinha se desenhando há tempos: desconfiança com economias abertas e aumento do protecionismo.

Em estudos recentes, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE) tem observado evidências de que a fragmentação  internacional  da  produção  tem  perdido  impulso,  principalmente  em  decorrência do crescimento da importância das tecnologias da Quarta Revolução Industrial.

Haverá um significativo redesenho das características da economia global e impactos consideráveis nas cadeias globais de valor. Tudo indica que a crise desencadeada pela covid-19 tem acentuado e acelerado esse movimento de necessidade de fortalecimento de estruturas produtivas internas no mundo.

 

Cadeia global de valor

Cadeia Global de Valor: O caminho que o produto traça, através de diversos países e empresas, compõe uma rede ou cadeia de proporções globais onde cada etapa do processo evidentemente adiciona valor ao produto. A cadeia de suprimentos global é um sistema frágil que consiste em vários elos que precisam funcionar adequadamente para que todo o sistema funcione.

As interrupções na economia global durante a pandemia perturbaram as cadeias de abastecimento em todos os continentes, muitos gargalos de abastecimento foram criados ao redor do mundo, causando necessidade de uma infinidade de bens e serviços, desde peças de automóveis e microchips a navios porta-contêineres que transportam mercadorias através dos mares.

O problema é que os Bancos Centrais, principais autoridades para controlar os preços, não têm influência sobre interrupções no fornecimento de curto prazo. Portanto, se tornam espectadores, esperando que as anomalias econômicas se corrijam sem danos duradouros.

A política monetária não pode resolver os choques do lado da oferta. A política monetária não pode produzir chips de computador, não pode produzir vento, não pode produzir motoristas de caminhão.  A solução tem que vir de grandes planos econômicos governamentais de médio ou longo prazo.

O economista Wallace Moreira aponta dois problemas das CGv: Primeiro, o processo de distribuição das CGVs tem se constituído de forma  assimétrica, com  algumas  regiões  apresentando  ganhos  com  sua  inserção  no  comércio mundial, enquanto outros países e regiões ficam à margem desse processo; Segundo, predomina uma lógica de comércio intrarregional, contrário aos princípios de livre comércio e abertura para novas relações comerciais.

 

Algumas imagens do congestionamento de navios nos principais portos do mundo em 2020 e 2021:

Cadeia regional de valor

Alternativamente, empresas e governos passaram a tentar diversificar suas fontes de insumo, de forma que se uma for comprometida existam outras fontes para manter suas produções. O problema é criar algo dessa magnitude em plena crise econômica, sanitária, política, social e de abastecimento.

Em nível global, configura-se uma progressiva e cíclica escassez de recursos e produtos, explicitando a necessidade de uma nova dinâmica econômica que tentará criar um novo arranjo. A percepção que tem crescido e gerando muitos debates é que as cadeias regionais podem se tornar mais competitivas com a redução das tarifas para o resto do mundo e menos suscetível a ruídos.

Diminuição de dependência de fretes, crise globais, crises regionais em outras partes do mundo, diminuição de tarifas e custos, são alguns dos fatores que podem explicar por que a proximidade pode ser importante para o comércio entre países vizinhos.

O comércio tem se tornado cada vez mais intrarregional, fragilizando assim o princípio de que o comércio tem um caráter mais global, com o predomínio do

livre comércio beneficiando de forma mais equitativa todas as nações. Esse fato é empiricamente comprovado na World trade statistical review, da Organização Mundial do Comércio (OMC), onde se afirma que o comércio internacional é predominantemente intrarregional, ou seja, as principais relações comerciais acontecem entre os países da mesma região e/ou blocos econômicos .

De acordo com esse relatório, em 2017, 70% do comércio da União Europeia  era feito entre os próprios países da região. Na Asean, esse indicador era de 67%; no Nafta, de 50%; e no Mercosul, de 20%. Com a ascensão das tecnologias da indústria 4.0 e a produção industrial em 3D, aposta-se muito forte nas cadeiras regionais de valor em substituição ao modelo atual. Com essa tecnologia, componentes físicos podem ser produzidos perto do local de montagem no país de  consumo,  reduzindo  ainda  mais  o  número  de fornecedores

 

Capital produtivo asiático

Com a abertura econômica de 1978, a China permitiu capital estrangeiro, e com isso, encontrou um mundo também em abertura e a procura de maiores taxas de lucros, foi o casamento perfeito. Entre muitos outros fatores, mão de obra abundante e qualificada, a redução de impostos para empresas estrangeiras, obrigatoriedade de transferência de tecnologia, contratação de fornecedores locais e infinitas regulações contra capitais especulativos, fizeram com que a China se tornasse a fábrica do mundo.

Conforme o gigante asiático foi aumentando sua capacidade industrial e virando uma indústria de ponta, ela passou a “terceirizar” para seus vizinhos com um cenário parecido ao chinês dos anos 80 a produção de bens e serviços de baixa complexidade, hoje em dia, a produção de sacolas retornáveis e roupas são no Vietnã, peças para celulares e computadores na Malásia, peças automotivas na Tailândia e assim vai. A covid19 evidenciou a dependência mundial por produtos feitos nesses países periféricos, mesmo pertencendo a grandes multinacionais europeias.

Como foi o caso de máscaras médicas que mais de 90% são feitas no Vietnã, luvas profissionais também vinham em grande parte da Malásia, aparelhos respiratórios da China e insumos pra vacinas também da China e da Índia, outra grande potência do setor médico e que em um momento de demanda mundial, ninguém conseguia adquirir.

A seriedade com que esses países altamente povoados levam casos de Covid19 e seus sucessivos lockdowns afetam as cadeias globais de valor e o comércio mundial como um todo, como a produção vem dessa parte do mundo e ela para com frequência, então o choque de oferta e demanda e o valor dos fretes não vão se resolver tão cedo.

Voltando ao artigo do Uallace, ele diz: a prevalência da globalização produtiva na Ásia em desenvolvimento e o predomínio da globalização financeira na América Latina explicam as diferenças de trajetória entre as regiões. Em sentido convergente com este último argumento muitos  analistas  defendem  a  tese  de  que  o  sucesso  do  Leste e Sudeste Asiático tem a ver com a forte intervenção governamental com políticas industriais orientadas para setores estratégicos.

 

Rcep

O acordo chamado de RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente) abrange cerca de um terço da economia, da população mundial e do PIB global foi assinado ano passado. Visa adicionar US $ 186 bilhões à economia mundial por meio da melhoria do comércio regional asiático. Os signatários são: Brunei, Camboja, Cingapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Tailândia e Vietnã, China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.

O acordo prevê diminuição de até 90% das barreiras tarifárias e não tarifárias dentro de alguns anos. Esse ano, metade dos países ratificaram o acordo e ele já começa a entrar em vigor. Já há estudos que avaliam um possível “Decoupling” (dissociação) das econômicas ocidentais x orientais, uma vez que a rivalidade entre EUA e Europa contra China e Rússia só aumenta.

Os pequenos países do sudeste asiático e mesmo Japão e Coreia do Sul estão mais preocupados com comércio do que com ideologia ao firmar acordos tão pesados como esse, e podem acabar se fechando dentro de suas cadeias regionais de valor e comercializar quase que exclusivamente entre eles, outro fator que pesa a favor dos asiáticos em relação ao resto do mundo é sua demografia, portanto, seu potencial mercado interno.

 

Intervenção estatal no ocidente

O resultado direto de tudo que foi dito aqui: crise nas cadeias globais de valor, ocidente como consumidor de bens e serviços, a Ásia com detentora do capital produtivo, aumento de investimentos asiáticos pelo mundo e em suas próprias infraestruturas levaram os EUA e a Europa a mudar suas políticas de pouca intervenção na economia que vinha desde os anos 80.

Recentemente o Biden conseguiu aprovação de um pacote de quase US$ 2 trilhões que serão investidos pesadamente em melhoria de estradas, portos e aeroportos para tentar aumentar a produtividade e capacidade do país.

A União Europeia foi pelo mesmo caminho, anunciou investimentos de € 300 bilhões, o plano prevê aplicar dinheiro em projetos de infraestrutura, climáticos e digitais em todo o mundo até 2027.

Com medo da crescente influencia chinesa pelo mundo e a diminuição do poder de influência das duas potências, principalmente na América Latina e na África, EUA e Europa estão adotando processos similares ao Chinês, tanto internamente quanto externamente.

 

Corrida de fretes 2015

Outro fator pouco comentado na grande mídia que também está afetando o comércio global para além da pandemia foi uma distorção no valor dos fretes em anos anteriores, principalmente em 2015. Saiu na própria folha uma matéria com o seguinte nome: “Frete de contêiner da China é mais barato que motoboy de SP para Campinas”

E a matéria segue: “Por R$ 300 não dá para pagar o serviço de um motoboy para ir e voltar dos aeroportos de Campinas e Guarulhos (SP) ou mandar uma caixa de Sedex de Brasília a São Paulo, mas é dinheiro suficiente para pagar o frete de um contêiner com 20 toneladas de produtos da China para o Brasil.

O valor do frete marítimo de contêineres entre a Ásia e o Brasil está até 85% mais baixo que o de 2014. É o menor da história da navegação entre os blocos, segundo o maior operador de navios no país, a Maersk”. Em julho de 2019 (antes da pandemia) já era visível o crescente aumento dos fretes globais.

E dois são os motivos que geraram isso:

1 – Preço baixo gerado por uma distorção no mercado devido ao aumento da capacidade dos navios que fazem linhas entre a Ásia e Mercosul, fruto de uma aposta no aumento do fluxo de comércio entre as duas regiões.

2 – A aposta de aumento do fluxo levou a uma corrida entre os armadores de navios para atingir o número 1 global, o que levou a esse valor irrisório de frete. O nome “guerra de fretes” é usado para explicar esse movimento de aumento de capacidade nos navios em busca da liderança global.

Essas distorções impulsionaram o valor exorbitante dos dias de hoje, um exemplo da falta de balanço no comercio global é o fato das importações da Ásia para os Estados Unidos aumentarem cerca de 40% em 2021 em comparação com 2019, enquanto o volume das exportações permaneceu praticamente o mesmo. Como resultado de todos esses fatores, as transportadoras não têm sido capazes de utilizar totalmente sua capacidade e atender à demanda.

Conclusão

Ainda é muito cedo para fazer afirmações mais categóricas sobre prazos e impactos precisos, mas, desde a crise de 2008, há uma tendência de enfraquecimento da lógica das cadeias globais de valor e uma ascensão de políticas que têm o objetivo de fortalecimento de cadeias produtivas nacionais, principalmente com a finalidade de garantir a soberania nacional.

A eleição do Trump com seu discurso protecionista em que ameaçava retaliar empresas estadunidenses que não voltassem ao país para competir com a China é o grande exemplo prático de como o protecionismo está em alta.

Muita gente considera o inicio da crise da globalização em 2008, e que a pandemia foi seu fim. Que agora estamos em um período confuso entre um modelo que se esgotou e outro que ainda não nasceu, e por isso, todas essas crises políticas e sociais ao redor do mundo: O mau estar da incerteza.

 

Referências

https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/73/33

https://m.folha.uol.com.br/mercado/2016/02/1741053-frete-de-conteiner-da-china-e-mais-barato-que-motoboy-de-sp-para-campinas.shtml

https://www.statista.com/statistics/1250636/global-container-freight-index/

 

 

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