Guerra da Ucrânia: Como o século XXI acabou com a ordem criada no pós-guerra
Putin invadiu durante o Conselho de Segurança, um claro recado de morte do sistema internacional vigente. E para corroborar essa tese, destaco os grandes acontecimentos desse século que culminaram na invasão e nesse ato simbólico:
Retrospectiva
Iraque 2003 – Sem o aval do Conselho, Bush ainda disse “Onu deve agir ou ser irrelevante”. Fenômeno sempre recuperado por Putin em seus discursos. A invasão estadunidense colocou uma pá de cal no principal órgão internacional que visava evitar guerras em grandes potências nucleares.
Kosovo 2008 – Reconhecimento do Kosovo, votação população local – independência. O problema do processo de independência do Kosovo foi o fato de que ele não foi negociado com a Sérvia. Ao excluir o Estado-parte abriu-se o precedente. Passou-se a mensagem de que independências localizadas não precisam passar por processos de negociações com autoridades centrais dos países dos territórios envolvidos.
Agosto – Invasão da Geórgia e anexação da Ossétia do Sul e da Abecásia. A Rússia reivindicou que estas ações foram uma intervenção humanitária necessária a imposição da paz, regiões se tornaram independentes ignorando o desejo da Geórgia, exatamente como os precedentes de Kosovo e Iraque.
2012 – JCPOA – acordo com o Irã – sanção como método político. Desentendimento Europa x EUA, afinal o Teerã não descumpriu com o acordo para ser punida.
2015 – Síria pede ajuda da Rússia para acabar com o terrorismo: Aqui retomo uma videoaula do prof Fiori e reproduzo seu argumento: Implosão do sistema ético em nome dos valores americanos e valores ocidentais, cristianismo x terrorismo, uma cruzada europeia feita, mas dessa vez feita pela Rússia – eua derrotados moralmente – perdeu a excepcionalidade moral e ética.
O país cristão e conservador que ajuda a instaurar a paz não é um aliado, e para piorar, a visão de cristianismo é ortodoxa, abriu-se o precedente novamente, agora outra potência com uma ordem “semelhante” tem o poder de definir a ordem mundial, o que é totalmente diferente da guerra fria, pois eram 2 modelos totalmente diferentes.
Trump – 2020 – Trump aprova sanções contra funcionários do tribunal penal internacional que investigavam crimes de guerra cometidos por soldados americanos. No caso o presidente usou o termo “our boys” para falar dos investigados, vale lembrar dos tenebrosos vídeos vazados pelo Wikileaks, Chelsea Manning e outros.
A secretária de imprensa da casa branca da época afirmou em um comunicado que as ações do tribunal “são um ataque aos direitos do povo americano e ameaçam violar nossa soberania nacional”.
2020- Parlamento iraquiano votou formalmente para a retirada de todas as tropas americanas em seu solo após mais um crime de guerra: matar Soleimani (general iraniano) enquanto ele estava em Bagdá em uma missão diplomática oficial, a partir desse dia, os EUA se tornaram oficialmente uma potência ocupante. O presidente Trump ameaçou o Iraque com sanções
2021 – Tribunal da ONU decide que o Reino Unido não tem soberania sobre as ilhas de Chagos, a decisão dos juízes confirma uma decisão da corte internacional de justiça (CIJ) e uma votação na Assembleia Geral da ONU. O arquipélago do oceano índico inclui uma base militar dos EUA. Londres disse que devolverá as ilhas quando não forem mais necessárias para fins de Defesa, contrariando três organismos internacionais de uma só vez.
Esclarecendo
Para explicar a diferença desses acontecimentos para alguns do século anterior como a guerra Irã-Iraque, bombardeiro da Sérvia e outros, volto a citar a palavra precedente e acrescento o termo balança de poder. Agora uma outra potência tem poder o suficiente para usar dos mesmos artifícios argumentativos para impor sua agenda. Neste século há um desequilíbrio fundamental: o poder bélico, econômico e diplomático está muito melhor distribuído do que o poder da caneta.
Como explica o prof Fiori: Poder é fluído, não estoque, estados que lutam pelo “poder global” estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra. Por essa razão, crises, guerras e derrotas não são o anúncio do “fim” ou do “colapso” da potência derrotada. Pelo contrário, podem ser uma parte essencial e necessária da acumulação de seu poder e riqueza, e anúncio de novas inciativas, guerras e conquistas.
Como os EUA fizeram nos anos 70 em que implodiu o sistema vigente que eles mesmos criaram em 1944 para poder emitir dinheiro e cobrir gastos com a Guerra do Vietnã e a inflação causada pelo choque do petróleo. A saída foi acabar com o padrão monetário dólar-ouro para poder permitir outro ciclo de acumulação enquanto analistas acreditaram que era um ato de fraqueza por parte de quem estava sem saída.
Novamente estamos nessa encruzilhada, agora o que parece diferenciar é o poder diminuto da hegemonia mundial de agir para acabar com a ordem vigente, além da China estar impedindo esse tipo de ação na Ásia e na África através de parcerias comerciais primordiais, algumas nações africanas como o Mali estão pedindo a retirada de tropas francesas, chamando-as de imperiais e solicitando ajuda a grupos de mercenários russos, o Grupo Wagner.
A demonstração maior que Washington quer encontrar essa saída são as medidas unilaterais de Donald Trump contra tudo e todos que ele julgava prejudicial para o interesse nacional, não hesitou em ameaçar sancionar a Alemanha, peitou a Europa para enviar mais dinheiro para a Otan e taxou produtos de muitos aliados.
Hegemonia em crise?
O pib dos eua saltou de us$ 8,8 trilhões no inicio de 1991 para us$ 12,6 trilhões no inicio de 2001 e a renda per capita saltou de us$ 23,443 em 1991 para us$ 35,912 em 2001. Em 2000 a economia dos estados unidos representava cerca de 30,5% do total produzido no mundo. Em 2010 esse percentual recuou a 22,7% e em 2019 voltou a subir para 24,4%. A força dos eua não emana “apenas” do tamanho da sua economia. O poder americano é uma conjunção de fatores, como ter a moeda forte mundial.
Mas o ponto aqui é apresentar que mais do que uma queda da economia dos eua, o ponto-chave é a ascensão da china. Em 1990 o pib chinês representava cerca 3,8% do pib mundial, esse indicador alcançou 17,3% em 2019. Outros tantos dados econômicos podem ser citados aqui para enfatizar o papel chinês, mas novamente, o ponto é outro: poder!
O crescimento chinês e asiático em geral limita os espaços de ação dos EUA, uma vez que cada vez mais países têm a China como principal parceiro comercial, e com isso, tomam decisões baseadas nesse cálculo.
Como Fiori mostrou, poder é fluidez e expansionismo constante, quando ele é travado indica que encontrou limite em um poder expansionista na direção contrária. Como esse texto demonstrou, a margem de manobra de Washington está cada vez menor, mas não quer dizer que não vão conseguir encontrar uma saída, esse é o principal fator que faz o Prof Fiori indicar que o poder vigente está a um passo de apertar o botão vermelho de implosão do sistema atual para recriar outro antes que o poder do sentido contrário o impeça de ter acesso a esse dispositivo.
Referências
J.l.Fiori, o poder global e a nova geopolítica das nações. Boitempo editorial, são paulo, 2007,
Https://www.youtube.com/watch?v=bo6s6prwl6g
“A diminuição da importância dos Estados Unidos e o impacto no câmbio”, por André Galhardo
Https://artsandculture.google.com/entity/m07s3p8h?hl=pt
Https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/fiori-mudanca-a-vistana-geopolitica-global/
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