Entrevista sobre o Brasil, o Mercosul e o cenário global

Segue abaixo uma entrevista que dei para uma repórter há 1 mes, mas que devido há uns problemas técnicos, não foi ao ar. Para não me sentir com o tempo totalmente perdido, vou postar aqui e deixar para a posteridade.

 

1 – Quais são as maiores promessas com desdobramentos diplomáticos e especialmente práticos que o governo Lula suscita?

Há uma grande expectativa internacional em torno do governo Lula. Uma sensação generalizada de “o Brasil voltou” por parte da comunidade internacional, e muito disso se deve ao fato que Bolsonaro quebrou com inúmeras tradições diplomáticas brasileiras que são históricas, que foram mantidas mesmo durante a ditadura militar. Movimentos protocolares como ir para a Argentina na primeira viagem internacional do presidente recém-empossado, até abandonar neutralidades históricas, e respaldadas pela constituição como mudar embaixada de Israel de lugar, o que iria nos trazer problemas econômicos, já que somos os maiores exportadores de alimentos Halal para os países muçulmanos, isso em troca de uma pauta puramente ideológica.
Fato é que Bolsonaro trouxe imprevisibilidade internacional e desagradou os principais parceiros do Brasil constantemente, como por exemplo, em votações na ONU em que o Brasil se aliou com ditaduras do Golfo Pérsico nas chamadas pautas dos costumes. O tom extremamente conservador isolou o país, por vezes fomos o único país dito como ocidental a votar a favor ou contra certos assuntos ficando ao lado de Irã, Arábia Saudita e Catar e contrários à Alemanha, Suécia e Estados Unidos.
O que nos trás ao Lula, ele é visto como a antítese de Bolsonaro, a chegada dele dá um ar de retomada aos posicionamentos históricos do Brasil. Tanto é que em sua posse houve um recorde de chefe, líderes e enviados internacionais, já no dia 2 de janeiro a Noruega informou que tinha 3 bilhões de dólares para voltar a investir no Fundo Amazônia que foi congelado durante a gestão Bolsonaro e os principais líderes mundiais estão publicamente convidando o presidente Lula para uma viagem ou até mesmo se oferecendo para virem ao Brasil.
Somos um líder regional, abdicar desse protagonismo além de irracional é contraproducente. Sem o Brasil, a América do Sul fica à deriva, e sem o protagonismo regional, o Brasil perde o peso e o poder em discussões internacionais que possam ser de seu interesse. E nisso os governos anteriores do Lula foram exitosos, durante seus 8 anos de governo o Brasil consolidou sua liderança no continente e a expandiu para a África e Oriente Médio.

2 – Quais são os maiores prejuízos deixados pela gestão anterior?

O cenário atual do Brasil é de terra arrasada. O desmonte de inúmeros conselhos em que a população civil tinha poder de voto e de organização, os gastos sem limites feitos para tentar a reeleição trouxe desequilíbrio fiscal sem precedentes e programas sociais dilacerados, o aparelhamento generalizado das instituições como o que vemos agora no escândalo do Banco Central que supostamente é independente, o descrédito em vacinas já está fazendo algumas doenças voltarem após décadas, o racha no tecido social em que famílias pararam de se falar e ainda tem muita gente querendo golpe militar ou acreditando em fraude nas urnas. Vamos precisar de décadas para cicatrizar as feridas.

3 – Já há alguns setores se manifestando contra a coalizão que Lula estabelece com Argentina e países vizinhos, sob o argumento de que emprestaremos dinheiro e até caminhamos para formação de moeda única. O que é fato e o que é fake em torno disto?

Os empréstimos do BNDES estão abarrotados de lendas urbanas que já grudaram no imaginário coletivo e que o governo Lula vai ter muita dificuldade em explicar para a população. O BNDES não empresta dinheiro para países, ele empresta para empresas nacionais prestarem seus serviços no exterior, ainda que possam discordar, e é totalmente aceitável que o façam, é preciso que haja honestidade na temática, e a prática é tão comum que no mundo há mais bancos de desenvolvimento do que países.
A integração regional da América do Sul beneficia o Brasil em diversas frentes, somos a maior economia do bloco, exportamos mais produtos de maior valor agregado para o Mercosul do que para outras regiões, os países da região com economias mais saudáveis compram mais nossos produtos e serviços e outra gama de benefícios que poderia citar. Portanto, faz sentido em usar o BNDES para apoiar a Argentina, o Paraguai, o Uruguai etc, claro que o estudo precisa ser seriamente estudado e sua viabilidade ser rigorosamente analisada, mas a demonização do banco só prejudica aos nossos interesses.

Já sobre a moeda, a polêmica da vez, trata-se de uma moeda comum e não moeda única, ou seja, seria uma moeda para pagamentos entre os países. Desde 2008 existe o SML (Sistema de Pagamentos em Moedas Locais) entre os membros do Mercosul, mas ele tem alguns problemas e praticamente não foi utilizado. O que foi conversado na Argentina foi a possibilidade de criar um sistema similar que tenha uma maior funcionalidade, e claro que há também o fator político, Fernandez vai concorrer à reeleição esse ano e precisa criar fatos novos para movimentar sua campanha diante do cenário econômico tão negativo.

4 – Para quem ainda considera o assunto das Relações internacionais distante, pontue 5 episódios da história recente que comprovam o contrário

Por vezes parece mesmo muito distante ver um bando de engravatado em uma reunião em Nova York ou na Suíça com a nossa correria do dia a dia para trabalhar e consumir itens básicos para uma vida minimamente razoável, mas na verdade é exatamente o oposto e as decisões e atividades estão totalmente conectadas.
a – O Brexit é resultado direto do aumento do nacionalismo vindo da insatisfação popular, entre outras coisas, com a crise financeira de 2008 e a diminuição do poder de compra das famílias, só que a solução se tornou ainda mais danosa. A saída do Reino Unido da União Europeia levou à escassez de mão de obra, falta de caminhoneiros, prateleiras vazias em mercados e agora uma greve histórica de enfermeiros com sobrecarga de trabalho por falta de profissionais aptos ao trabalho, resultado direto desse fim do livre fluxo de pessoas. A rotatividade de primeiros-ministros que não é nada comum por lá é fruto de toda essa cadeia de causas e consequências.
b – A guerra comercial pela primazia tecnológica entre Estados Unidos e China elevou o preço de muitos produtos em todo o mundo, aqui no Brasil o caso mais conhecido é o de automóveis. Taiwan depende do guarda-chuva militar norteamericano para manter-se afastada da China, em troca, Washington faz alguns pedidos, o mais recente foi a proibição de exportação de chips e semicondutores para Pequim. A TSMC, empresa taiwanesa responsável por mais da metade da produção global desses produtos prontamente atendeu, o que levou a escassez dele pelo mundo porque a cadeia global foi afetada.
c – O exemplo mais simples é o da Guerra da Ucrânia e da Rússia levou ao aumento global de fertilizantes e outras commodities pelo mundo por serem grandes produtoras.
d – Já um efeito curioso dessa guerra são as medidas que visam diminuir o efeito inflacionário da energia pelo mundo. Os Estados Unidos chamaram o governo venezuelano considerado ditatorial há anos para conversar e tentar aumentar a oferta do produto no mercado. Após taxar o Maduro dos piores adjetivos possíveis e formalmente reconhecer outro presidente como legítimo, abriram um canal de negociação porque o bolso sempre fala mais alto.
e – Deixo esse último para explorar mais o ponto citado anteriormente do produto Halal e o que o Brasil poderia perder mudando a embaixada em Israel. Produtos Halal significa que ele teve sua produção respeitando preceitos islâmicos, caso os países do Oriente Médio boicotassem o Brasil pela mudança não seria algo fácil de remediar. Os alimentos precisam seguir uma série de medidas que façam com que os animais não sofram no seu abate e todo o processo deve estar voltado pra Meca, as fábricas no Brasil mudaram suas plantas para se adaptar e conquistar esse mercado. Portanto, não se trata apenas de mudar de importador, o prejuízo seria grande, tanto é que o Bolsonaro mudou de ideia devido à pressão dos produtores.

5 – Fale dos motivos que te levaram a se dedicar profissionalmente ao assunto, como você o exerce e quais são seus sonhos profissionais?

A disciplina de Relações Internacionais talvez seja a com maior multidisciplinaridade de todas. Considero a História como a espinha dorsal da matéria, mas que necessita o tempo todo do auxílio da Geografia, Sociologia, Filosofia, Economia, e claro, Ciências Políticas. E essa é a razão pela qual me fascina tanto, as possibilidades são imensas.
Eu tenho um projeto chamado MenteMundo, nele o foco principal é trazer para o Brasil e o brasileiro a importância do sudeste asiático, que hoje é a região do mundo com maior dinâmica econômica e o bloco comercial responsável pelo nosso maior superávit comercial, ultrapassando a União Europeia e até mesmo o Mercosul.
Singapura já é o sétimo país de nossas exportações, a Indonésia estará entre as cinco maiores economias do mundo por volta de 2050 e o Vietnã já é visto como “nova China”. Dessa forma que exerço o que aprendo diariamente e também é o sonho profissional, tornar esse projeto útil de alguma forma para o aumento da cooperação diplomática e econômica entre o Brasil e os países da região.

 

 

 

 

 

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