Recensão crítica do livro “Um discurso sobre as ciências” de Boaventura de Sousa Santos, por Marcelino Sinete

 

Resumo

Este trabalho visa uma breve leitura sobre o livro “Um Discurso Sobre As Ciências” de Boaventura de Sousa Santos, no qual faremos uma recensão crítica da sua tese que, defende uma posição epistemológica antipositivista e procura fundamentá-la à luz dos debates que então se travavam na física e na matemática. Põe em causa a teoria representacional da verdade e a primazia das explicações causais e defende que todo o conhecimento científico é socialmente construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objectividade não implica a sua neutralidade. Descreve a crise do paradigma dominante e identifica os factores principais do que designa como paradigma emergente, em que atribui às ciências sociais anti-positivistas uma nova centralidade, e defende que a ciência, em geral, depois de ter rompido com o senso comum, deve transformar-se num novo e mais esclarecido senso comum.

Palavras-chaves: Ciências, Paradigma dominante, Paradigma emergente, Santos, Rousseau, Sokal, Copérnico, Galileu e Newton, Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein.

Introdução

Boaventura de Sousa Santos escreve, sobre as Ciências e defende uma posição epistemológica anti-positivista postulando que a ciência, em geral, deve transformar-se num novo e mais esclarecido senso comum. Neste sentido, veremos que neste livro, o pensador português começou por caracterizar sucintamente a ordem científica hegemónica. Analisou depois os sinais da crise desta hegemonia, distinguindo entre as condições teóricas e as condições sociológicas da crise. Finalmente especulou sobre o perfil de uma nova ordem científica emergente, distinguindo de novo entre as condições teóricas e as condições sociológicas da sua emergência. Neste percurso analítico,
Para a nossa recensão crítica desse pensamento de Santos, apresentamos a referência do livro; informação sobre a pessoa autora; estrutura do livro, síntese do livro; destaques das citações relevantes; avaliação crítica e Conclusão.

Referência da Obra
SANTOS, Boaventura de Sousa, Um discurso sobre as ciências / Boaventura de Sousa Santos. -. Ed. – São Pauulo: Cortez, 2008
Informação sobre a pessoa autora – colhida na Internet
Seguir @bsousasantos – Cv Nota Biográfica

Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, a 15 de Novembro de 1940. É Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973) e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também Global Legal Scholar da Universidade de Warwick e Professor Visitante do Birkbeck Colellege da Universidade de Londres.

É Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
De 2011 a 2016, dirigiu o projecto de investigação ALICE – Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências o mundo, um projecto financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC), um dos mais prestigiados e competitivos financiamentos internacionais para a investigação científica de excelência em espaço europeu.
Tem escrito e publicado extensivamente nas áreas de sociologia do direito, sociologia política, epistemologia, estudos pós-coloniais, e sobre os temas dos movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado, direitos humanos, com trabalho de campo realizado em Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador. Os seus trabalhos encontram-se traduzidos em espanhol, inglês, italiano, francês, alemão, chinês, romeno e dinamarquês.

É também poeta. A escrita de poesia foi sempre acompanhando o labor do académico e intectual público, tendo-se estreado com Antologia de poesia universitária (Lisboa: Portugal, 1962). Publicou em seguida O rosto quotidiano (Coimbra: Amedina, 1966). Têmpera (Coimbra: Centelha, 1980), Madison e outros lugares (Porto: Afrontamento, 1989), Viagem ao centro da pele (Porto: Afrontamento, 1995), Escrita INKZ – Anti-manifesto para uma arte incapaz (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. Também publicado em Portugal pelas Edições Afrontamento, em 2007), Janela presa no andaime (Belo Horizonte: Scriptum, 2008); Rap global (Rio de Jneiro: Aeroplano, 2010) Falta de ar em plena estação (São Paulo: Escrituras Editora, 2012), Pomada em pó. Poemas epigramáticos (Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 2013), e 139 Epigramas para Sentimentalizar Pedras (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015); Crônicas de Acabária (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 20179; Manifesto Antipteridófitas (Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2017).

Estrutura do Livro

Boaventura de Sousa Santos, organizou as suas ideias no seu livro, em referência, nos seguintes termos:
Primeiro, Defende uma posição epistemológica anti positivista e procura fundamentá-la à luz dos debates que então se travavam na física e na matemática;
Segundo, Põe em causa a teoria representacional da verdade e primazia das explicações causais e defende que todo o conhecimento cientifico é socialmente construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis e que a sua objectividade não implica a sua neutralidade; Terceiro, Descreve a crise do paradigma dominante e identifica os traços principais do que designa como paradigma emergente, em que atribui as ciências sociais anti positivistas uma nova centralidade e; No fim Defende que as ciências em, geral, depois de ter rompido como o senso comum, deve transformar-se num novo e mais esclarecido senso comum.

Este percurso analítico foi balizado pelas seguintes hipóteses de trabalho:
Primeiro, começa a deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências sociais; segundo, a síntese que há que operar entre elas tem como Pólo catalisador as ciências sociais; terceiro, para isso, as ciências sociais terão de recusar todas as formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanicismo materialista ou idealista com a consequente revalorização do que se convencionou chamar humanidades ou estudos Humanísticos; quarto, esta síntese não visa uma ciência unificada nem sequer uma teoria geral, mas tão-só um conjunto de galerias temáticas onde convergem linhas de água que até agora concebemos como objectos teóricos estanques; quinto, à medida que se der esta síntese, a distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática.

Síntese do Livro
Um Discurso sobre as Ciências é o título que Boaventura de Sousa Santos encontrou e atribuiu o seu livro em estudo.
Neste livro, Santos defende uma posição epistemológica anti positivista e procura fundamentá-la à luz das querelas que então se travavam na física e na matemática.
Quer dizer, Santos interveio para defender a posição anti positivista analisando a situação presente e passada das ciências, no seu conjunto. Dessa análise, constatou que os progressos científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os Séculos que nos precedem. Para a defesa da sua posição, Santos partiu da Pré-história da ciência, Século XVI até o Século XIX.
Segundo Santos (2008), o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o Século XVIII e os primeiros vinte anos do Século XX, de Adam Smith e Ricardo Lavoisier e Darwin, de Max e Dukheim… E tal modo é assim que dizer que em termos científicos vivemos ainda no Século XIX e que o Século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar. Mais ainda, na reflexão de Santos diz que se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no futuro, do mesmo modo duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda compõem os dias de muitos de nós.

Por causa das incertezas que imergiram, Santos afirmou que vivemos em sistema visual muito instável em que mínima flutuação da nossa percepção visual provoca ruturas na simetria do que vemos daí que segundo esse autor tal como noutros períodos de transição, difíceis de entender e de percorrer, é necessário voltar as coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples.
Ainda na reflexão de Santos, (2008) faz a relação entre a ciência e a virtude, fala da revolução científica do Século XVI pelas mãos de copérnico, Galileu e Newton e da Ciência moderna do Século XVIII.

O autor critica a teimosia da ciência em considerar irrelevante, ilusória e falso o conhecimento ordinário ou vulgar que nós próprios criamos e usamos para dar sentido as nossas práticas. É assim que questiona o papel de todo conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade.

Em linhas gerais Santos disserta os seguintes aspectos:
Senso Comum Versus Científico;
Relação da Ciência e Virtude;
Momento da incerteza sobre a evolução da ciência;
Primazia do Conhecimento Científico;
As hipóteses de trabalho;
O Paradigma dominante;
A nova visão do mundo;
A prioridade metafísica;
O modelo lógico matemático e consequências;
Divisão e classificação das ciências;
Leis e Previsões das Ciências;
Ideias de ordem estatal;
Mecanismos convenientes para uma Burguesia;
Transposição do modelo que estudava a natureza para o estudo da sociedade;
Liberdade imprevisivel individual Versus Determinação colectiva previsível;
Positivismo oitocentista;
Obstáculos pelos quais não pode tratar as Ciências Sociais como Ciências naturais;
Ciências Socias são consensos paradigmáticas;
Semelhança entre concepção científica Social e Científica natural;
Paradígma das Ciências Modernas;
A Crise do Paradígma e
O Paradígma imergente.

Sumarizando, este livro publicado originalmente em Portugal em 1987 e hoje em 13a edição, apresenta uma crítica profunda à epistemologia positivista, tanto nas ciências físico-naturais, como nas ciências sociais, fundamentando-a à luz dos debates na física e na matemática. Vê nessa epistemologia um sinal da crise final do paradigma científico dominante e identifica os traços principais de um paradigma emergente que confere às ciências sociais uma nova centralidade na busca de um novo senso comum.
Destaque das Citações Relevantes

Sobre o Conhecimento:
Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verosímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar. (SANTOS, 2008) pág. 14.
A ambiguidade das ciências:

Recorrendo à teoria sinergética do físico teórico Hermann Haken, podemos dizer que vivemos num sistema visual muito instável em que a mínima flutuação da nossa percepção visual provoca rupturas na simetria do que vemos. Assim, olhando a mesma figura, ora vemos um vaso grego branco recortado sobre um fundo preto, ora vemos dois rostos gregos de perfil, frente a frente, recortados sobre um fundo branco. Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambiguidade e a complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, síncrona com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita. (SANTOS, 2008) pág. 15.
Temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade.

Momento da incerteza:
Estamos de novo perplexos, perdemos a confiança epistemológica; instalou-se em nós uma sensação de perda irreparável tanto mais estranha quanto não sabemos ao certo o que estamos em vias de perder; (SANTOS, 2008) pág. 17.

A primazia do Conhecimento Científico:
Mais do que isso, duzentos e tal anos depois, as nossas perguntas continuam a ser as de Rousseau. Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações entre a ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou colectivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade. (SANTOS, 2008) pág.18.

O PARADÍGMA DOMINANTE
O senso comum e as chamadas humanidades ou estudos humanísticos (em que se incluíram, entre outros, os estudos históricos, filológicos, jurídicos, literários, filosóficos e teológicos); (SANTOS, 2008) pág. 21.
O caso de Galileu é particularmente exemplar, e é ainda Descartes que afirma: “Eu não podia escolher ninguém cujas opiniões me parecessem dever ser preferidas às dos outros, e encontrava-me como que obrigado a procurar conduzir-me a mim próprio”4. Esta nova visão do mundo e da vida reconduz-se a duas distinções fundamentais, entre conhecimento científico e conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana, por outro. (SANTOS, 2008) pág. 24.

Como diz Bacon, a ciência fará da pessoa humana “o senhor e o possuidor da natureza”. (SANTOS, 2008) pág. 25.

A experiência não dispensa a teoria prévia, o pensamento dedutivo ou mesmo a especulação, mas força qualquer deles a não dispensarem, enquanto instância de confirmação última, a observação dos factos. (SANTOS, 2008) pág. 26.

Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. (SANTOS, 2008) pág. 27.

As qualidades intrínsecas do objecto são, por sim dizer, desqualificadas e em seu lugar passama imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou. (SANTOS, 2008) pág. 28

Já em Descartes uma das regras do Método consiste precisamente em “dividir cada uma das dificuldades… em tantas parcelas quanto for possível e requerido para melhor as resolver”11. A divisão primordial é a que distingue entre “condições iniciais” e “leis da natureza”. (SANTOS, 2008) pág. 28.

A descoberta das leis da natureza assenta, por um lado, e como já se referiu, no isolamento das condições iniciais relevantes (por exemplo, no caso da queda dos corpos, a posição inicial e a velocidade do corpo em queda) e, por outro lado, no pressuposto de que.o resultado se produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais. (SANTOS, 2008) pág. 29.

Aristóteles distingue quatro tipos de causa: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final.

Segundo positivismo oitocentista, só há duas formas de conhecimento científico — as disciplinas formais da lógica e da matemática/e as ciências empíricas. (SANTOS, 2008) pág. 33.

Segundo o modelo mecanicista das ciências naturais — as ciências sociais nasceram para ser empíricas. O modo como o modelo mecanicista foi assumido foi, no entanto, diverso. Distingo duas vertentes principais/a primeira, sem dúvida dominante, consistiu erh aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade todos os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o século XVI; a segunda, durante muito tempo marginal mas hoje cada vez mais seguida, consistiu em reivindicar para as ciências sociais um estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza. Estas duas concepções têm sido consideradas antagónicas, a primeira sujeita ao jugo positivista, a segunda liberta dele, e qualquer delas reivindicando o monopólio do conhecimento científico-social. (SANTOS, 2008) pág. 34.

Eis alguns dos principais obstáculos: as ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenómenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire;/os fenómenos sociais são de natureza subjectiva e como tal não se deixam captar pela objectividade do comportamento; as ciências sociais não são objectivas porque o cientista social não pode libertar-se, no acto de observação, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista. (SANTOS, 2008) pág. 36.

… nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate tende a atravessar verticalmente toda a espessura do conhecimento adquirido. O esforço e o desperdício que isso acarreta é simultaneamente causa e efeito do atraso das ciências sociais.
A segunda vertente reivindica para as ciências sociais um estatuto metodológico próprio. Os Obstáculos que há pouco enunciei são, segundo esta vertente, intransponíveis. (SANTOS, 2008) pág. 38.

O comportamento humano, ao contrário dos fenómenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo acto externo pode corresponder a sentidos de acção muito diferentes. (SANTOS, 2008) pág. 38.

A CRISE DO PARADÍGMA DOMINANTE

Defenderei nesta secção: primeiro, que essa crise é não só profunda como irreversível; segundo, que estamos a viver um período de revolução científica que se iniciou com Einstein e a mecânica quântica e não se sabe ainda quando acabará; terceiro, que os sinais nos permitem tão-só especular acerca do paradigma que emergirá deste período revolucionário mas que, desde já, se pode afirmar com segurança que colapsarão as distinções básicas em que assenta o paradigma dominante e a que aludi na secção precedente. (SANTOS, 2008) pág. 41.

As leis da física e da geometria assentam em medições locais. “Os instrumentos de medida, sejam relógios ou metros, não têm magnitudes independentes, ajustam-se ao campo eléctrico do espaço, a estrutura do qual se manifesta mais claramente nos raios de luz”. (SANTOS, 2008) pág. 43.

Como ilustra Wigner, “a medição da curvatura do espaço causada por uma partícula não pode ser levada a cabo sem criar novos campos que são biliões de vezes maiores que o campo sob investigação” (SANTOS, 2008) pág. 44.

Segundo Heisenberg: não se podem reduzir simultaneamente os erros da medição da velocidade e da posição das partículas; o que for feito para reduzir o erro de uma das medições aumenta o erro da outra. Este princípio, e, portanto, a demonstração da interferência estrutural do sujeito no objecto observado, tem implicações de vulto. Por um lado, sendo estruturalmente limitado o rigor do nosso conhecimento, só podemos aspirar a resultados aproximados e por isso as leis da física são tão-só probabilísticas. Por outro lado, a hipótese do determinismo mecanicista é inviabilizada uma vezque a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir. Por último, a distinção sujeito / objecto é muito mais complexa do que à primeira vista pode parecer. A distinção perde os seus contornos dicotómicos e assume a forma de um continuum.
“A ciência e a tecnologia têm vindo a revelar-se as duas faces de um processo histórico em que os interesses militares e os interesses económicos vão convergindo até quase à indistinção” (SANTOS, 2008) pág. 57.

O PARADÍGMA IMERGENTE

“a coerência global das nossas verdades físicas e metafísicas só se conhece retrospectivamente”. (René Poirier e antes dele disseram Hegel e Heidegger) pág. (SANTOS, 2008) pág. 59.
Daniel Bell da sociedade pós-industrial, citado por Santos, 2008 pág. 60, diz o seguinte: Eu falarei, por agora, do paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente. Com esta designação quero significar que a natureza da revolução científica que atravessamos é estruturalmente diferente da que ocorreu no século XVI. Sendo uma revolução científica que ocorre numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente).

Todo o conhecimento científico-natural é científico-social

A teoria da “ordem implicada”, que, segundo o seu autor, David Bohm, pode constituir uma base com um tanto à teoria quântica como à teoria da relatividade, concebe a consciência e a matéria como interdependentes sem, no entanto, estarem ligadas por nexo de causalidade. São antes duas projecções, mutuamente envolventes, de uma realidade mais alta que não é nem matéria nem consciência. O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza / cultura, natural/ artificial, vivo / inanimado, mente/ matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo, colectivo / individual, animal / pessoa. Este relativo colapso das distinções dicotómicas repercutesse nas disciplinas científicas que sobre elas se fundaram. Aliás, sempre houve ciências que se reconheceram mal nestas distinções e tanto que se tiveram de fracturar internamente para se lhes adequarem minimamente. Refiro-me à antropologia, à geografia e também à psicologia. Condensaram-se nelas privilegiadamente as contradições da separação ciências naturais / ciências sociais. Daí que, num período de transição entre paradigmas, seja particularmente importante, do ponto de vista epistemológico, observar o que se passa nessas ciências. (SANTOS, 2008), pág. 64.

Todo o conhecimento é local e total

Na ciência moderna o conhecimento avança pela especialização. O conhecimento é tanto mais rigoroso quanto mais restrito é o objecto sobre que incide. Nisso reside, aliás, o que hoje se reconhece ser o dilema básico da ciência moderna: o seu rigor aumenta na proporção directa da arbitrariedade com que espartilha o real. Sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor. É hoje reconhecido que a excessiva parcialização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. (SANTOS, 2008), pág. 76.
No paradigma emergente o conhecimento total, tem como horizonte a totalidade universal de que fala Wigner ou a totalidade indivisa de que fala Bohm. Mas sendo total, é também local. Constitui-se em redor de temas que em dado momento são adoptados por grupos sociais concretos como projectos de vida locais, sejam eles reconstituir a história de um lugar, manter um espaço verde, construir um computador adequado às necessidades locais, fazer baixar a taxa de mortalidade infantil, inventar um novo instrumento musical, erradicar uma doença, etc., etc. A fragmentação pós-moderna não é disciplinar e sim temática. Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. Ao contrário do que sucede no paradigma actual, o conhecimento avança à medida que o seu objecto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alas-tramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces. (SANTOS, 2008) pág. 77.

Todo o conhecimento é autoconhecimento

Parafraseando Clausewitz, podemos afirmar hoje que o objecto é a continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação. (SANTOS, 2008).

A ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para a considerar melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos fenómenos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação científica dos fenómenos é a autojustificação da ciência enquanto fenómeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim, autobiográfica. (SANTOS, 2008).
Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.

O conhecimento científico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum. Só assim será uma ciência clara que cumpre a sentença de Wittgenstein, “tudo o que se deixa dizer deixa-se dizer claramente”. Só assim será uma ciência transparente que faz justiça ao desejo de Nietzsche ao dizer que “todo o comércio entre os homens visa que cada um possa ler na alma do outro, e a língua comum é a expressão sonora dessa alma comum”. (SANTOS, 2008) pág. 91.

Avaliação Critica

É uma obra que nos remete para uma reflexão sobre a realidade que julgamos conhecer. Parece que não conhecemos a realidade mas sim conhecemos a verdade que nós construímos. Platão, no livro sobre a história de Psicologia, afirmou que a árvore que nós conhecemos, não é a verdadeira árvore e que a verdadeira árvore está para além do nosso Ego. Disse ainda que o mundo conhecido por olhos duma mosca não é o mesmo conhecido por olhos de um homem. Assim sendo, podemos acreditar no Santos quando diz que todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum.

O autor do livro, descarta a ideia de que a ciência seja detentora da realidade e coloca a primazia o senso comum. Isto mostra a visão ampla que Santos possui no que tange a verdade que o homem construiu. Mais ainda ele nos sugere que na nossa tentativa de conhecer a realidade, recorramos também aos outros saberes como o Teológico, Filosófico, Empírico.

Ao questionar sobre o método usado para se chegar a verdade e afirmar que tal definição de método parte do interesse onde o cientista pretende chegar, Santos coloca cada vez mais em crise o conhecimento científico. Este posicionamento é suportado por actual questionamento sobre a neutralidade da investigação científica, a manipulação dos resultados de pesquisa dentre outros relatos. Este cenário, é alimentado pelo facto da investigação científica actual valer pelos ganhos que esta trás no cientista. O cientista, hoje, vive e ou alimenta-se pelos trabalhos de investigação científica que realiza. Tais trabalhos, encomendados por um patrão o qual deve ver salvaguardados os seus interesses. Daí advém a manipulação dos resultados.

Na era de Galileu, a pesquisa científica era feita do saber pelo saber. Era feita, acima de tudo, pelo prazer que o saber trazia nos humanos. Importa referir que tal investigação era realizada nos tempos de ócio dos cientistas. Por essa razão, não havia espaço para a manipulação dos resultados e se havia, era minúscula.

Hoje o cientista vive do pão que o trabalho de investigação científica lhe traz. Sem ele, o cientista não vive. O cientista deve acomodar os interesses de quem lhe manda investigar, o patrão, sob pena de perder o mercado de emprego. Boaventura Santos levanta esta questão ao afirmar que a definição do método de investigação científica parte do interesse onde o cientista pretende chegar. Contudo, Santos não traz a solução deste problema.

Acreditamos que a neutralidade científica pode ser alcançada através das instituições de Pesquisa, Investigação e Extensão privadas que tenham investimento próprio e autonomia em face das instituições estatais encontrarem-se submerças na lama das ideologias dos regimes dominantes.
Santos 2008, diz que temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade.

Na verdade, por aquilo que o mundo hoje testemunha: os genocídios, as alterações climáticas, a poluição do planeta, a degradação do factor humano dentre outros males, parece anular o contributo positivo da ciência. A ciência e tecnologia, hoje, está mais a matar do que a dar vida. O desenvolvimento que se esperava da ciência e tecnologia está a resultar na desgraça das sociedades.

Por exemplo, com recurso a ciência e tecnologia, algumas potências económicas, que integram a actual ordem económica internacional, procuram perpetuar o seu poder, dominação e hegemonia, sobre países que apresentam uma invejável dotação, em recursos naturais de primeira linha, de modo a impedir a sua emergência como novas potências económicas e ofuscar as suas pretensões políticas.

Constatamos também a luta pela hegemonia económica, no sentido de que os antigos colonizadores passaram a desenvolver uma luta pelo controlo da evolução cognitiva (intelectual) e económica dos Estados Pós-Coloniais Africanos (EPCA), como defenderam Lopez e Stohl (1989), actualmente em processo de formação (state building).

Com efeito e sobretudo, após o fim do sistema colonial, as potências procuram encontrar nas Políticas de Gestão Educativa (PGE) um mecanismo de manipulação e/ou influência do destino e/ou mesmo do desempenho dos Estados Pós-Coloniais Africanos (EPCA). Isto é, tendem a abandonar o uso da sua capacidade bélica como instrumento de coerção, mas continuam a colocar obstáculos aos EPCA no que respeita ao incremento dos seus níveis de coersão rumo a sua efectiva independência económica. Quer dizer, um adequado sistema de formação, capaz de garantir uma efectiva evolução sócio económica, assente na natureza cumulativa e adaptativa do conhecimento e capaz de estabelecer um ambiente favorável para o crescimento e desenvolvimento económico Estados Pós-Colonias, representa uma séria ameaça ao poder hegemónico das indústrias de produção de pobres e ao complexo industrial, económico, financeiro militar das Indústrias do genecídio. Em fim, temos presente uma obra que deve nos inspirar para revermos a verdade que nós conhecemos e aproximarmos à realidade.

Conclusão

Na verdade este livro, apresenta uma crítica profunda à epistemologia positivista, tanto nas ciências físico-naturais, como nas ciências socias, fundamentando-a à luz dos debates na física e na matemática. Vê nessa epistemologia um sinal da crise final do paradigma científico dominante e identifica os traços principais de um paradigma emergente que confere às ciências sociais uma nova centralidade na busca de um novo senso comum.
Finalmente, Boaventura Santos ao nos instar para perguntar pelo papel de todo o conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da ciência para a nossa felicidade, acabou provocando outra querela, se calhar com dimensão superior a das querelas que então se travavam na física e na matemática. Contudo, na nossa análise, concluímos que o contributo positivo da ciência para o desenvolvimento está minimizado pelo efeito negativo por ela (a ciência) criado.

Referências
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Marcelino Sinete Pangaia
Mestre em Administração Pública
Licenciado em Psicologia das Organizações e do Trabalho
Especialista do Regime Geral da Função Pública
Maputo – Moçambique
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