Guerra Civil em Mianmar?

Contexto atual

Com a Constituição de 2008, o país transformou-se em uma república parlamentarista com a denominação de República da União de Myanmar. O Parlamento é bicameral, com mandatos de 5 anos e obrigatoriamente possui 25% de assentos destinados aos militares, mudanças constitucionais necessitam de mais de 75% de aprovação.

Os dois grandes partidos do país são: A Liga Nacional para a Democracia (NLD) da Aung San Suu Kyi, que surgiu após um levante antigoverno em 1988 que foi brutalmente reprimido, desde então o partido luta por democracia e liberdade e foi o grande responsável pelo fim da ditadura militar oficialmente em 2011. Aung San Suu Kyi é a Conselheira de Estado, um cargo criado para ela pois a constituição proíbe que pessoas casadas estrangeiros ou com filhos de estrangeiros ocupem o cargo mais alto do país.

E O Partido da União para o Desenvolvimento e Solidariedade (USDP), foi formalmente criado em junho de 2010 com o apoio tácito dos militares para ter um partido aliado para obter além dos 25% que já estão em sua posse. No entanto, recentemente o partido entrou em choque com os militares quando não apoiou a candidatura de alguns oficiais.

O país sofre com alguns conflitos étnicos internos, entre ele o mais famoso, a crise dos Rohingyas, minoria muçulmana que lutou ao lado dos aliados na Segunda Guerra mundial sob falsas promessas de obter um Estado próprio contra os japoneses que ocupavam o país e tinham apoio da população budista local. Desde o fim do conflito, o governo local nega direitos e até cidadania dos Rohingyas já nascem apátridas.

Eleições

Com cerca de 70% de comparecimento, bem alto para um período pandêmico, a Liga Nacional para a Democracia (NLD) obteve uma vitória maior do que a prevista com mais de 80% dos votos, aumentando de 255 assentos para 258 na câmara baixa e de 135 para 138 na alta.

Imediatamente após as eleições, os líderes do Partido da União para o Desenvolvimento e Solidariedade (USDP) começaram a denunciar supostas fraudes, alegaram que fiscais foram subornados e instigaram apoiadores a fazer vídeos e mostrar as irregularidades.

O maior monitor eleitoral de Mianmar, a Aliança do Povo para Eleições Credíveis, a Rede Asiática de Eleições Livres (ANFREL), com sede na Tailândia, e o Carter Center, com sede nos Estados Unidos, observaram que o dia da votação transcorreu pacificamente e sem grandes irregularidades.

Sem grandes avanços, a nova tática dos militares foi forçar o pleito nos estados de Rakhine, Shan e Kachin, que ficaram de fora das eleições nacionais de novembro por estarem em zonas de conflitos entre eles e grupos rebeldes armados. Estima-se que 1,2 milhões de pessoas foram impedidas de votar.

O Golpe

Poucas horas antes da primeira reunião do novo Parlamento o golpe teve início. A líder Aung San Suu Kyi, o presidente Win Myint e outras figuras do partido foram presas, a internet foi desligada, tropas se espalharam por toda capital e tomaram a TV estatal. Várias horas depois, uma transmissão oficial informou aos cidadãos que o país estava em Estado de Emergência de um ano devido a “fraude eleitoral”.

As tensões entre a liderança militar e civil aumentaram na semana anterior com o início da nova sessão parlamentar se aproximando. O porta-voz militar, o general Zaw Min Tun telegrafou que os militares poderiam “agir” se suas exigências para investigar fraudes eleitorais não fossem atendidas.

Aung San Suu Kyi e outros altos funcionários do governo mantiveram uma reunião de emergência com militares para tentar acalmar a situação. Mas Suu Kyi rejeitou todas as demandas dos militares, que incluíam a demissão da comissão eleitoral e recontagem dos votos com supervisão militar.

Operação 1027

No final de outubro, três grupos étnicos rebeldes em Mianmar, conhecidos como Aliança das Três Irmandades – o Exército da Aliança Democrática Nacional de Mianmar de Kokang, o Exército de Libertação Nacional de Ta’ang e o Exército Arakan, iniciaram a Operação 1027 contra a junta. Já nas semanas seguintes, conseguiram assumir o controle de centenas de postos avançados de segurança e de três áreas controladas pelo governo no norte do país. Este conflito reflete a perpetuação das tensões étnicas no norte de Mianmar nas últimas décadas.

O governo perdeu o controle de 202 postos militares avançados e cinco municípios no norte do estado de Shan ainda em dezembro. As principais rotas comerciais para a China estão agora nas mãos da irmandade desde então.

Os cálculos atuais são de mais de 300 bases e cidades controladas pelos militares – incluindo cruciais passagens fronteiriças com a China, a Índia e a Tailândia – foram tomadas por forças anti-junta. O número de soldados do regime que se renderam aproxima-se dos 700 e os mortos podem passar de 30 mil, incluindo 10 generais, o problema é que segundo ongs especializadas o exército total gira em torno de 150.000, ou seja, A junta militar pode ter perdido entre 20 e 25% do seu contingente. Pela primeira vez desde o golpe de 2021, o fim do regime militar parece não só plausível, mas viável.

 

Cenário Geral

Um fator que pode explicar a rápida perda de tantos territórios pode ser a falta de experiência em combate, mesmo em constante estado de guerra, os militares do país tem mudado o foco para o embate político, é o que alguns analistas dizem. Que a repressão a movimentos políticos que os militares veem como ameaçadores receberam muito mais atenção e energia do que os rebeldes que estão lutando por autonomia ou independência desde 1948 que é quando Mianmar se declarou independente.

A resistência de Mianmar é um dos movimentos antiautoritários de maior sucesso que o mundo já viu. Ao contrário dos movimentos pró-democracia anteriores em Mianmar, que envolveram segmentos da sociedade, a revolta nacional de hoje está a varrer um conjunto diversificado de atores que demonstraram vontade de fazer enormes sacrifícios para resistir à junta.

Embora um fluxo constante de deserções e a recente rendição de batalhões inteiros tenham minado a força dos militares, os analistas também salientam que os soldados da junta não têm desertado e juntado-se em massa a grupos de resistência, sugerindo que o moral, mesmo que baixo, não desmoronou. E conforme a junta continua a perder terreno, o alerta é que poderá tornar-se ainda mais violenta

Os militares também lutam contra um adversário profundamente dividido. Apesar da sofisticada coordenação demonstrada pelos exércitos rebeldes por detrás da Operação 1027, o país continua a ser uma manta de retalhos de grupos de resistência sem um único comando central, muitos deles perseguindo os seus próprios objetivos estreitos.

À medida que as facções díspares lutam por território, até mesmo alguns grupos pouco aliados têm lutado entre si, Dois grupos rebeldes no leste que começaram a discutir sobre qual deles iria cobrar impostos sobre os habitantes locais, e outros dois no oeste, entre a minoria étnica Chin, que entrou em confronto recentemente.

 

Aliança da liberdade

 

Exército de Arakan

O Exército de Arakan é um grupo armado do estado de Rakhine, famoso pela migração em massa da etnia Rohingya, minoria muçulmana que sofre perseguições de longas décadas no país de maioria budista. O grupo luta pela autodeterminação da etnia na região, tentando criar uma espécie de confederação no país. Esse conflito é responsável pelo maior campo de refugiados no mundo que fica em Bangladesh.

Exército de Libertação Nacional Ta’ang

O Exército de Libertação Nacional de Ta’ang originou-se como Exército / Organização de Libertação do Estado de Palaung, o grupo luta pela autodeterminação do povo Ta’ang. atualmente aliado do Exército de Independência Kachin e do Exército do Estado de Shan. Juntos, eles têm conduzido operações no norte estado de Shan. Após as eleições gerais de 2010 e as reformas constitucionais em 2011, o governo criou a Zona Autoadministrada Pa Laung no norte do Estado de Shan como uma zona especial de autoadministração, a região é uma das mais subdesenvolvidas do país, com poucas escolas e hospitais. Etnicamente chinês, o grupo controla a fronteira com Yunnan na China, lugar de muitos refugiados mianmarenses.

Exército da Aliança Nacional Democrática

O Exército da Aliança Nacional Democrática é um grupo insurgente armado na região de Kokang. O exército existe desde 1989, tendo sido o primeiro a assinar um acordo de cessar–fogo com o governo, que durou 20 anos. Diversos relatórios indicam que esse grupo, o exército nacional e outros grupos paramilitares lucram juntos na região com o tráfico de drogas no chamado triângulo dourado.

Após uma briga interna em 2009, exército nacional e local estraram em confronto e assim estão até hoje, as ondas de migração para a China são constantes, há quem diga que a China arma o Exército da Aliança Nacional Democrática da etnia Kokang.

Em Junho deste ano, sob pressão da China, a Aliança da Irmandade concordou em participar em conversações de paz com os militares, embora estas tenham sido rapidamente interrompidas. Mas eles ainda pareciam estar fora da guerra civil mais ampla.

NUG

O Governo de Unidade Nacional da República da União de Mianmar ( NUG ) é um governo de Mianmar no exílio formado basicamente pelas autoridades que sofreram o golpe de 2021 e outros grupos menores insurgentes. O Parlamento Europeu reconheceu o NUG como o governo legítimo de Mianmar. O Conselho de Administração Estatal — a junta militar governante do país — declarou o NUG como ilegal e uma organização terrorista.

A Nug reivindica controlar 50% do território do país, somando todos esses grupos, mas não há como ter certeza. Acrescentou que o NUG estabeleceu uma administração provisória em mais de 170 municípios em todo o país e está a trabalhar para melhorar o Estado de direito, o desenvolvimento, a educação, a saúde e a economia.

Recrutamento

Embora a junta tenha vantagens militares em termos do número de soldados, armas e equipamento à sua disposição, sofreu grandes perdas na luta contra os rebeldes. Considerando a recessão económica geral em Mianmar desde a pandemia e os movimentos antimilitares a nível nacional, é improvável que a junta consiga lançar uma campanha em grande escala.

De acordo com um site de notícias de Mianmar anti junta, a junta enfrentou “perdas graves em batalhas em todo o país, resultando em severo esgotamento das tropas”, levando o conselho militar governante a empregar uma série de táticas para recrutar indivíduos sob o pretexto de promover a paz.

Tanto é que anunciou semana passada um recrutamento oficial que começa em junho com 5.000 recrutas 1º lote para concluir o treinamento em dezembro de 2024, a Junta pretende conseguir 60 mil recrutas em um ano.  Aparentemente o alistamento obrigatório será para homens entre 18 e 35 anos e mulheres entre 18 e 27. Servir por no mínimo 2 anos e médicos 5. As mulheres serão recrutadas apenas no 5º lote, Após o treinamento, os recrutas podem escolher sua região preferida para servir.

O governo oferece um salário mensal de 120.000 kyat (cerca de US$ 57) e um saco de arroz. O salário-mínimo no pais está em torno de 48 mil kyat, mais ou menos um terço disso. Estudantes e trabalhadores no exterior podem adiar o recrutamento, aqueles que se juntarem à resistência serão punidos severamente.

Aldeões revelam ameaças diretas de oficiais militares, segundo eles, os militares estão indo de vilarejo em vilarejo dizendo que pelo menos 1 deve servir caso contrário tudo será incendiado.

“Fomos informados por anciãos da aldeia que, se não contribuirmos com mão de obra para a milícia, nossa aldeia pode entrar em uma lista negra”, disse um morador. “O Conselho Militar ameaçou indiretamente incendiar essas aldeias, deixando-nos sem escolha a não ser cumprir.”

Estimativas militares

Tradicionalmente, uma proporção de tropas por população de 20 para 1.000 é vista como necessária para uma campanha de contrainsurgência eficaz. Com a população de Mianmar em mais de 53 milhões, a junta precisaria de mais de 1 milhão de funcionários em sua folha de pagamento para atingir esse limite.

Estudos de think thanks sugerem uma menor proporção de tropas por população, de 2,8 para 1.000, para campanhas de contrainsurgência bem-sucedidas. Neste caso, a junta teria de mobilizar quase 150 mil soldados para ter sucesso. É questionável se eles têm tantas tropas à disposição.

A má qualidade dos militares é outro fator crítico que afeta negativamente a capacidade da junta de repelir os avanços dos grupos de oposição. Há relatos de pessoal de diferentes unidades sendo reunido para formar uma força de combate ou oficiais inexperientes enviados para defender as bases da junta. Para reforçar seus números, os militares usaram a coerção para recrutar novos funcionários, que são mal treinados e ainda menos motivados para lutar pela junta.

Enquanto isso, as forças existentes estão sofrendo com a diminuição do moral, como demonstrado por vários incidentes quando as tropas da junta se renderam ou fugiram para estados vizinhos em vez de defender suas posições. Em uma grande rendição em massa, mais de 300 soldados da junta e suas famílias decidiram depor as armas e se renderam ao Exército de Arakan no Estado de Rakhine.

Há também relatos conflitantes de que a junta condenou vários generais que se renderam aos grupos de oposição no Estado de Shan à morte ou prisão perpétua. Este incidente provavelmente afetará ainda mais o moral entre os militares. Além do jogo de números, os militares de Mianmar têm contado fortemente com o poder aéreo e o apoio para conter os avanços dos grupos de oposição.

No entanto, o domínio da junta no ar está a ser desafiado. Houve casos de forças da oposição que conseguiram derrubar os aviões da junta. Além disso, as forças da oposição também mostraram sua capacidade de usar o poder aéreo contra as forças da junta, empregando com sucesso drones visando as bases da junta, muitos deles de fabricação caseira, uma engenhosa arma feita à base de muita criatividade.

Segundo diversos perfis que cobrem o país no twitter, numerosos aviões da junta foram abatidos pelas forças de resistência nos últimos meses, algo sem precedentes. Também sem condições de afirmar com certeza, outros perfis estão dizendo que dissidências já estão aparecendo no exército, com grupos pedindo até a renúncia do líder, o general Min Aung Hlaing.

 

Refugiados

Dos 2,3 milhões de pessoas deslocadas pelos combates em Myanmar desde o golpe, segundo as Nações Unidas, um terço fugiu das suas casas só nos últimos três meses. Aceh, na Indonésia, atraiu recentemente a atenção da mídia devido à resistência da comunidade local à chegada de refugiados Rohingya à região. Esta mudança repentina deixou os observadores humanitários confusos, uma vez que Aceh acolheu os refugiados Rohingya de braços abertos em 2015, e ganhou elogios internacionais por isso.

As redes sociais também desempenham um papel fundamental na formação e divulgação das percepções atuais, especialmente a cobertura dos refugiados Rohingya na Malásia. Na Malásia, a presença de refugiados Rohingya está a causar dois problemas principais. Primeiro, tem havido um aumento de incidentes criminais, tais como agressões, dentro de campos de refugiados. Em segundo lugar, existe uma ameaça econômica percebida devido ao número de refugiados que trabalham em empregos informais. A mídia local online em Aceh está compartilhando notícias sobre essas questões, sugerindo que aceitar refugiados Rohingya poderia levar a problemas semelhantes na sua região.

O que levou na virada do ano à triste notícia de que A marinha indonésia empurrou para trás um barco que transportava refugiados Rohingya quando se aproximava da costa de Aceh. Mais de 1.500 refugiados Rohingya desembarcaram na Indonésia em barcos de madeira pouco navegáveis ​​desde Novembro, de acordo com dados da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR),

As estimativas do número de refugiados de Mianmar que vivem na Índia variam muito. Embora o ACNUR tenha declarado que 21.000 Rohingya viviam na Índia em Dezembro de 2022, outros continuam a citar uma estimativa do governo de 2017 de 40.000 . Outras fontes também estimam que 50 000 cidadãos de Mianmar, principalmente da etnia Chin, procuraram segurança na Índia nos últimos dois anos – embora a falta de mecanismos de proteção adequados signifique que é quase impossível estimar o número real. Eles estão amplamente concentrados no estado de Mizoram.

A índia também tem devolvido pessoas e criado campos para abrigar os refugiados chamadas de “ casas-abrigo ” que funcionarão como centros de detenção, na prática. Somente em outrubro, nas primeiras contra-ofensivas dos militares, Cerca de 5.000 cidadãos de Mianmar, incluindo centenas de crianças, que fugiram para a China em meio a uma ofensiva militar étnica no estado de Shan

Asean

Mianmar está proibido de enviar seu ministro das Relações Exteriores ou qualquer representante político para reuniões de alto nível da ASEAN desde o final de 2021, quando impediu o enviado do grupo de se reunir com Aung San Suu Kyi.

No final de janeiro, a junta militar de Mianmar enviou um alto funcionário a uma importante reunião da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) no Laos. Pela primeira vez. A ASEAN sempre deixou aberta a opção de a administração militar enviar um “representante não político” para participar nestas reuniões, algo que a junta recusou em protesto até agora.

“Nos sentimos um pouco otimistas de que o engajamento pode funcionar, embora tenhamos que admitir que os problemas que estão acontecendo em Mianmar não se resolverão da noite para o dia”, disse Saleumxay Kommasith, ministro de relações exteriores do Laos, atual presidente da Asean . “Acho que provavelmente há uma pequena luz no fim do túnel.”

A questão é por que razão os generais decidiram finalmente aceitar o convite da ASEAN. Os últimos meses viram certamente a sorte do regime piorar, com grupos de resistência a conquistar terreno significativo em todo o país, particularmente no oeste de Mianmar e na parte norte do Estado de Shan, ao longo da fronteira com a China.

Aparentemente, o governo militar est´a tentando ganhar mais tempo para esmagar a resistência ou arquitetar uma resolução política nos seus próprios termos. No entanto, há poucas provas de que os militares de Mianmar estejam subitamente dispostos a dialogar com os pleitos da Asean.

A ASEAN, com a sua estrutura baseada no consenso, não está preparada para negociar uma solução para uma crise de segurança interna que envolva um dos seus membros. Com a junta a sofrer reveses crescentes no campo de batalha e a China a aprofundar os seus esforços para influenciar a trajetória do conflito para atingir os seus próprios objetivos, o papel da ASEAN é cada vez restrito, no entanto, em uma crise mais aguda, o ato de deixar a porta sempre aberta pode ser uma solução viável.

Vizinhos

A extrema violência e instabilidade em Mianmar ameaçam a região, mas os vizinhos não ofereceram soluções reais. Embora a Índia e a Tailândia raramente tenham interagido com a oposição anti-golpe, a junta vê todos os vizinhos como potenciais abrigos para os vários grupos rebeldes que operam no país. Bangladesh, por exemplo, é considerado a origem da população muçulmana desprivilegiada e perseguida de Mianmar.

Os governantes militares de Mianmar também veem a Tailândia como um porto recorrente para grupos de oposição no sul, embora o golpe de estado tailandês de 2014 tenha aproximado as duas juntas, o atual governo da Tailândia tem procurado reabilitar Mianmar dentro da ASEAN.

Já a Malásia, apela consistentemente à libertação da líder da oposição, Aung San Suu Kyi. Quanto aos Estados Unidos, Washington continua a exercer pressão sobre o exército de Mianmar para restaurar a democracia, ao mesmo tempo que presta assistência não letal ao movimento pró-democracia.

 

China

A China é o principal vizinho de Mianmar, o maior em termos de economia e população. Os laços entre os dois países são cooperativos, mas complexos. Por um lado, a China é o maior parceiro comercial de Mianmar e fez investimentos consideráveis ​​no país como parte do Corredor Económico China-Mianmar, um subconjunto da Iniciativa Cinturão e Rota. Por outro lado, tem vindo a costurar influência através do patrocínio e da venda de armas a grupos étnicos insurgentes.

A aposta da China é que a junta representa a sua melhor oportunidade para avançar e proteger os seus interesses em Mianmar está agora sujeita a tensões consideráveis. Há também a suspeita de proteção dos generais às redes criminosas dentro de Mianmar que visam cidadãos chineses por fraude e trabalho forçado, Pequim cooperou com grupos étnicos armados na fronteira com a China – especificamente a Aliança das Três Irmandades – na expulsão da força de guarda de fronteira Kokang, que foi responsável por administrar mais de 200 sindicatos fraudulentos que arrecadam um bilhão de dólares por ano na China.

Os objetivos de curto prazo da China parecem centrados em erradicar os sindicatos fraudulentos na sua fronteira e proteger o seu oleoduto através de Mianmar, a única fonte de petróleo e gás canalizado para as províncias do sudoeste da China. Mas os desenvolvimentos recentes parecem ter levado a China a reconsiderar se a junta é capaz de restaurar a estabilidade em Mianmar necessária para assegurar os planos de longo prazo da China para o Corredor Económico China-Mianmar.

Em 25 de novembro, o Exército de Libertação do Povo Chinês anunciou que iria iniciar o treinamento de combate real na fronteira com Mianmar. As áreas de treinamento incluem as cidades de Mangshi e Ruili, o condado de Gengma e outros locais no sul de Yunnan, com foco em testar as capacidades de combate das tropas na zona de guerra, como mobilidade rápida, vedação e controle de fronteiras e ataques de fogo.

Os exercícios visam preparar-se para emergências e salvaguardar a soberania nacional, a estabilidade das fronteiras e a segurança das vidas e propriedades das pessoas.

O exercício militar da China atraiu uma atenção significativa do Ocidente, com alegações de que a China está a apoiar a Aliança das Três Irmandades nos seus ataques à junta de Mianmar. O objetivo de tal propaganda é alimentar o sentimento anti-China em Mianmar e sabotar a relação bilateral.

Pequim tem seguido consistentemente uma política de não interferência nos assuntos internos de Mianmar e nunca interveio militarmente nos conflitos étnicos do país. Em vez disso, comprometeu-se a promover conversações de paz entre a junta e os grupos étnicos armados e a fornecer assistência humanitária aos refugiados de Mianmar.

O objetivo do recente exercício militar, que terminou em 28 de Novembro, foi dissuadir tanto a junta como os grupos armados étnicos da escalada das tensões. Serve como um exercício prático destinado a proteger a fronteira em caso de escalada de conflito, particularmente ataques aéreos transfronteiriços ou ataques de artilharia que possam representar uma ameaça à segurança nacional da China.

O governo chinês tem colaborado com a junta, em vez de com grupos étnicos armados, para combater conjuntamente as fraudes nas telecomunicações, por exemplo.

Embora alguns possam zombar da noção de que a China apoiaria um grupo armado antigoverno em sua própria porta, é revelador que o governo permitiu protestos anti-chineses em Yangon, em novembro

De certa forma, pode-se dizer que a China é mais vítima do que beneficiária dos atuais conflitos étnicos no norte de Mianmar, uma vez que tudo o que ela menos desejo é conflitos militares em suas fronteiras com prováveis desdobramentos em seu território. Pequim deseja um acordo de cessar-fogo entre a junta e os grupos étnicos armados, bem como paz e estabilidade na região.

 

Índia

A Índia foi rudemente despertada pelo péssimo desempenho da junta no campo de batalha, enquanto centenas de soldados, esmagados por forças de resistência superiores, fugiam através da fronteira. O governo indiano tem a oportunidade de construir parcerias mais robustas com as diversas forças de resistência que assumiram o controle das principais cidades fronteiriças, mas o seu foco está agora em encontrar uma resposta imediata à crescente influência da China em Mianmar.

Os recentes acontecimentos no terreno criam uma oportunidade para reforçar a coordenação internacional, especialmente com a Índia, que já vê os seus planos para o Leste ameaçados pela situação do outro lado da fronteira.

A Índia pretende eliminar uma zona de livre circulação através de sua fronteira com Mianmar, depois de repatriar cerca de 150 soldados que cruzaram a fronteira em meio a intensos combates lançados pelo Exército rebelde de Arakan no norte, onde a junta luta para se manter.

A zona oferecia uma área segura para as pessoas que fugiam dos combates, que aumentaram drasticamente desde outubro, mas o ministro do Interior indiano, Amit Shah, propôs o fim da zona, a ser imposto pela construção de uma cerca ao longo da fronteira de 1.631 quilômetros.

Durante uma visita ao estado de Assam, no nordeste da Índia, Shah disse que seu governo “decidiu cercar toda a fronteira aberta Índia-Mianmar”, acrescentando que “vai acabar com esta instalação”, de acordo com o Times of India.

Um general local disse em uma entrevista coletiva no início deste mês que outros 416 soldados de Mianmar foram repatriados depois que as forças antijunta tomaram o controle de cidades-chave e bases militares perto da fronteira Indo-Mianmar, ao lado de cidadãos de Mianmar que buscaram refúgio em Mizo

A zona de livre circulação é em grande parte desabitada, mas permite que parentes e moradores de ambos os lados tenham acesso sem passaporte e visto a menos de 16 quilômetros de ambos os lados de uma fronteira que corta as montanhas do Himalaia e através de planícies densamente florestadas. Nenhum prazo foi definido para a construção da cerca.

 

Russia

Rússia e Mianmar realizaram exercícios militares marítimos em novembro. Os exercícios são a mais recente indicação do papel da Rússia como um dos poucos apoiadores de Mianmar desde o golpe militar Em termos de defesa, a Rússia oferece aos militares de Mianmar um raro fornecedor de armas para vencer uma guerra civil violenta e uma alternativa para evitar a dependência excessiva de Pequim

Mianmar está em estado de guerra civil desde sua independência em 1948, depois que as autoridades não cumpriram o Acordo de Panglong, alcançado no ano anterior para administrar as relações entre sua população etno-regionalmente diversa da era colonial.

O acordo previa algo como uma federação para essas regiões que hoje são foco das dores de cabeça dos militares. Deve-se mencionar também que as regiões de maioria minoritária da periferia são muito ricas em recursos minerais e outros, enquanto as regiões de Bamar são o celeiro do país. A relação simbiótica entre esses dois lados desempenha um papel fundamental no acirramento desse conflito.

 

Conclusão

Para concluir, um resumo de todo o cenário: a junta militar não para de perder terreno, como resposta, ela faz ataques aéreos indiscriminados nessas regiões com movimentos rebeles. A história recente da região mostra quão ineficaz é esse tipo de medida, e como com isso só atrai mais adeptos contrários à sua causa. Para piorar, se as denúncias de ameaças em cada aldeia do país caso não atendam ao alistamento militar forem verdade, o governo já perdeu essa guerra, mesmo que demore e pelo mesmo motivo.

Só resta saber se os grupos insurgentes, que residem nos extremos do território, vão se contentar em tomar os terrenos que sempre reclamaram ou se vão aproveitar o momento de fraqueza do governo central e marcharão rumo ao centro do país, as áreas em que sempre foram dominadas pela elite, a maioria Bamar, que representam cerca de 68% da população do país, ou seja, cerca de 35 milhões de pessoas, que certamente se uniriam aos militares caso se sintam ameaçados e se vejam cercados por esses grupos. Nesse caso sim, acredito que uma guerra civil de grandes proporções pode acontecer.

E por fim, o cenário externo, pouco pode-se esperar dos vizinhos ou dos EUA e da Europa, que só sabem trabalhar com sanções. Os vizinhos imediatos estão mais preocupados com segurança nas fronteiras e em evitar fluxo de imigrantes, e para isso vão apenas demonstrar que as portas estarão abertas para soluções de conflitos para os dois lados, e caso a sorte mude de lado e os rebeldes representem maior segurança para esses dois pontos mencionados, eles não se preocuparão em negociar com eles.

Sobre a China em si é um pouco mais delicado e de difícil previsão, que há o agravante da etnia chinesa de certos grupos. Pequim os vê com outros olhos, os chamados chineses ultramarinos, ainda que não usem mais oficialmente esse termo para não se indisporem com seus vizinhos.

Em uma conversa com o prof Emiliano Unzer, ele comentou o seguinte sobre o complicado cenário étnico e histórico de Mianmar:

O estado de Mianmar se fundamentou em torno dos militares, e isso acabou se tornando no Estado, pois foram muitas etnias nas margens que foram contatadas e influenciadas por missionários e comerciantes estrangeiros, que certamente enxergaram oportunidade de corroer a dinastia birmanesa do século 19.

Ou seja, desafio do país durante sua independência foi manter a soberania e unidade, e com isso, teve que lidar com regiões afastadas e identificadas com outras localidades e lealdades. Nem um nem outro se via como uma nação. Era um conceito mais vago de lealdades locais com alianças feitas com birmaneses bamares, que podiam ora se aliar a chineses e tibetanos, ora a ingleses e indianos da região leste.

 

 

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