Por que a Indonésia não virou uma Iugoslávia?
A construção desse episódio surgiu no inicio do livro “the asean miracle” de kishore mahbubani e de Jeffery Sng. Quando o li, fiquei com a sensação de “depois preciso pesquisar melhor isso”. Mês passado ouvindo um podcast do mesmo Kishore com um outro especialista em sudeste asiático, eles voltaram ao termo e destrincharam um pouco e refletiram sobre possíveis motivos que fizeram com que a Indonésia tivesse mantido sua integridade territorial e deram como exemplo a Iugoslávia, alegando que a nação asiático tinha tudo para seguir o modelo do país europeu.
Segue o trecho do livro: “Numa era de crescente pessimismo geopolítico, quando muitos líderes e pensadores preveem o aumento da competição e da tensão entre grandes potências, especialmente entre a EUA e China, a ASEAN criou uma plataforma diplomática indispensável que reúne regularmente todas as grandes potências com ela. Além disso, a ASEAN criou ambientes propícios para as grandes potências para conversar entre si. Dentro da ASEAN, uma cultura de paz evoluiu como resultado da absorção do costume indonésio de Musyawarah e Mufakat (consulta ou deliberação e consenso). Agora a ASEAN começou a partilhar esta cultura de paz com a região mais ampla da Ásia-Pacífico.
Quando as tensões aumentam entre a China e o Japão e os seus líderes têm dificuldade em falar entre si outro, a ASEAN fornece uma plataforma que salva a aparência e o cenário certo para reinicie a conversa. Significa isto que a ASEAN é a organização regional perfeita? Absolutamente não, é extremamente imperfeita e é precisamente por isso que o mundo tem não entende a história da ASEAN.“
O que é Musyawarah Mufakat?
Musyawarah Mufakat é uma prática, ou um estilo, de construção de consenso baseada na cultura nativa indonésia. Foi adotada como uma das teorias filosóficas fundamentais do estado indonésio (Pancasila) e tornou-se o método do sistema de tomada de decisão do governo indonésio de Sukarno, o primeiro líder da Indonésia (1945-1967), conhecido como a Era da Velha Ordem. Mohammad Hatta, líder do movimento de independência da Indonésia e primeiro vice-presidente da Indonésia, descreveu que a raiz da estrutura política indonésia em “A democracia indígena predominante na aldeia indonésia”.
Esta mudança foi defendida como uma chegada a um quadro próprio da personalidade indonésia e como uma rejeição de um processo externo (regra da maioria) que levou as reuniões a lutar pela suas vantagens em vez de para o benefício do país. Musyawarah e mufakat excluem assim a possibilidade de a maioria impor os seus pontos de vista às minorias. A Constituição alterada de 1945 estipula que cada projeto de lei será discutido pelo parlamento e pelo presidente até chegar a uma aprovação conjunta, exigindo assim consenso entre os legisladores e o presidente.
No momento em que Sukarno organizou a sua “Democracia Guiada”, a chegada à Constituição de 1945 incluiu a aprovação do Mufakat (consentimento unânime) como base de tomada de decisão para o legislativo. Esta mudança foi defendida como uma chegada a um quadro adequado à identidade indonésia e como uma rejeição de um procedimento ocidental. Outros pesquisadores acrescentam que o conceito de Musyawarah Mufakat é o fundamento ideológico sobre o qual assenta a escolha da autoridade em sustentar a prática rural no ambiente urbano.
O que é Pancasila?
Desejando unir o diverso arquipélago da Indonésia em um único Estado pós-Segunda Guerra Mundial, o futuro Presidente Sukarno promulgou o Pancasila como a teoria filosófica fundamental do novo estado indonésio. Sua filosofia política era fundamentalmente uma amalgamação de elementos do monoteísmo, do nacionalismo e do socialismo. Sukarno afirmou que o Pancasila era uma filosofia de origem indígena indonésia que ele desenvolveu sob a inspiração de tradições filosóficas históricas indonésias, incluindo tradições, indianas hindus, ocidentais cristãs e árabes islâmicas.
O termo consiste da justaposição de duas palavras em javanês arcaico (originárias do sânscrito), “pañca“, que significa cinco, e “sila” significando princípios. Embora musyawarah-mufakat seja considerado como algo que surge da tradição rural, também foi incorporado ao sistema político nacional. É um dos cinco pilares do chamado “Cinco Princípios do Estado”, que declara a Pancasila como “a democracia guiada pela sabedoria interior das deliberações entre representantes.”
Os Cinco Princípios são:
Crença num único Deus,
Sentido da humanidade justa e civilizada,
Unidade da Indonésia,
Democracia guiada pela sabedoria interior e emanada das deliberações entre os representantes do povo,
Justiça social para todo o povo Indonésio,
Cada princípio tem um símbolo que o representa:
Estrela: Representa a fé em Deus, através do islamismo, cristianismo, budismo, hinduísmo ou qualquer outra religião.
Corrente: Representa o humanitarismo dentro da Indonésia e nas relações com a humanidade como um todo.
Figueira: Representa o nacionalismo e a união entre os muitos grupos étnicos da Indonésia.
Búfalo; Simboliza o governo representativo.
Arroz e Algodão: Representa a justiça social.
A administração da Nova Ordem de Suharto, o segundo Presidente da Indonésia, que iniciou em 1966, apoiou fortemente o Pancasila. Seu governo promoveu os cinco princípios como uma ideologia nacional fundamental. Eles foram descritos como representando a sabedoria antiga do povo indonésio, pré-datando a introdução de religiões estrangeiras como o hinduísmo e o islamismo. Em um discurso de julho de 1982, que refletia sua ligação com as crenças javanesas, Suharto glorificou o Pancasila como uma chave para alcançar a vida perfeita de harmonia com Deus e com os semelhantes
“ | A democracia do pancasila procura encontrar um equilíbrio entre os interesses do indivíduo e os da sociedade. Procura impedir a opressão dos fracos pelos fortes, seja por meios econômicos ou políticos. Portanto, acreditamos que o Pancasila seja uma sociedade sócio-religiosa. Resumidamente, suas principais características são a rejeição da pobreza, do atraso, dos conflitos, da exploração, do capitalismo, do feudalismo, da ditadura, do colonialismo […] e do imperialismo. Esta é a política que escolhi com confiança. | |
— Suharto[8] |
Aplicações do Musyawarah Mufakat
É um procedimento básico habitual de tomada de decisão reconhecido e visto em reuniões de aldeia, tem a ver com as obrigações do indivíduo para com a comunidade, a compatibilidade do poder e a relação da autoridade estatal com os sistemas sociais, políticos tradicionais e de decisões. Pesquisadores acrescentam que o conceito de Musyawarah Mufakat é o fundamento ideológico sobre o qual assenta a escolha da autoridade em sustentar a prática rural no ambiente urbano. Inspirado no aprendizado islâmico, que prioriza uma abordagem pacífica na resolução do conflito, especialmente em disputas familiares.
Mesmo quando uma disputa ocorre, uma aldeia tem um espírito cooperativo, um princípio de unidade e um valor comum de harmonia na preocupação geral que pode diminuir as demandas de preocupações específicas. Com base na responsabilidade geral pelo solo, cada pessoa, ao realizar as suas atividades económicas, sentiu que precisava agir de acordo com a aprovação pública. Isso vem especialmente de Java, a ligação entre posse da terra, estatuto político e compromissos de trabalho continua até os dias de hoje.
A regra de tomada de decisão de consentimento unânime por meio de deliberação ainda é utilizada, mesmo após a democratização, no processo legislativo no âmbito nacional parlamento. O Parlamento apela às facções para que se esforcem por deliberar (musyawarah) tanto quanto possível para obter consentimento unânime (mufakat). Supostamente, só quando não se consegue o consentimento unânime é que a regra da tomada de decisão por maioria pode ser usada. Muitos dos legisladores mantêm a norma de que o parlamento deve evitar decidir por voto.
No código criminal da Indonésia tem a seguinte frase: “de acordo com a lei indonésia original, cada decisão, seja aceita ou rejeitada, deve ser tomada com consentimento unânime.” Muitas vezes parece que era o chefe da aldeia que determina tudo de forma autoritária, enquanto todos os outros membros da comunidade (ou da aldeia) agem apenas para aprovar suas decisões. Na realidade, a discussão e o consenso já aconteceram nos bastidores, Em algumas áreas rurais do país, principalment entre os javaneses, há um costume de se evitar a todo custo controvérsias em público. Portanto, a reunião oficial para votar uma decisão final é apenas cerimonial e simbólica.
Contudo, há um temor que o conceito morra no coletivo imaginário do país na medida em que a Indonésia vai se modernizando, urbanizando e adotando aos poucos os moldes das democracias ocidentais, mesmo tendo sobrevivido há duas ditaduras de vieses tão antagônicos e ter sido retomada com a nova democracia. Para alguns, o modo de vida urbano moderno leva automaticamente ao individualismo, e com isso, em uma forma de olhar para o sistema de votação da maioria algo que melhor represente as demandas do cidadão das grandes cidades.
Prós e Contras
Por um lado, o sistema é visto como uma forma de defesa das minorias, já que elas possuem poder de veto igualmente ao das maiorias. Podendo assim impedir que as maiorias violem os direitos e interesses dos primeiros unilateralmente. Quando as minorias enfrentam situações onde os seus direitos e interesses críticos estão em risco, recorrerão mesmo a ações extraconstitucionais ou antidemocráticas, como um golpe de estado, a fim de proteger seus direitos e interesses. A criação de muitos pontos de veto pode garantir credibilidade e compromisso de todos os intervenientes na democracia. Mesmo que um lado transgrida os direitos e interesses do outro unilateralmente, este último pode vetar tal ação, e o o status quo é restaurado.
Já por outro, os pontos de veto, ao mesmo tempo que criam estabilidade política, também afetam a eficiência dessas políticas. Quanto mais vetoristas houver, mais difícil será chegar a um acordo entre intervenientes e menos eficiente será o sistema política como um todo. Há estudos que apontam que o parlamento indonésio tem sido menos eficiente no período democrático (pós 1999). Desde então, são vários os desafios que o país precisa se posicionar e é muito difícil achar o meio termo para diversas opiniões divergentes.
Asean
Olhando um pouco para a Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático) sob o verniz do Musyawarah Mufakat, a dinâmica é muito mais simples e com menos contrapartida. Primeiro porque são apenas dez para decidir, e não centenas, como no parlamento indonésio. E segundo, por justamente ser a maior nação do bloco, a Indónesia não tenta assediar os menores para se alinharem a ela em votação ou fazer lobby para ter maioria em algum caso de seu interesse. Ela aplica seu conceito interno de consenso e faz com que ninguém saia da organização por se sentir menos representado.
Para pensar em uma forma mais prática, no livro “Does Asean Matter?”, o autor, e diplomata indonésio Marty Natalegawa, conta em detalhes como ele agiu, sendo representante da Indonésia que presidia o órgão no ano de 2011, quando Camboja ativou a UNESCO para reivindicar uma área fronteiriça em disputa com a Tailândia. Ele se reunia com as partes separadamente até encontrar pontos que poderiam unir ambas, e sempre mencionava a necessidade de resolver a questao internamente antes que alguma potência se intrometesse na questão, e por consequência, na região. Como manter a “Asean centrality” era mais importante do que pequenas escaramuças.
Conclusão
Os europeus vieram com o conceito de Estado-Nação, unificaram centenas de ilhas com dezenas de sistemas, culturas, religiões e línguas, aplicaram um modelo político e economico totalmente diverso da população local, e após dois séculos e muito protesto, foram embora. A manutensão da coesão política e territorial da Indonésia é um grande feito, algo a ser admirado e estudado por todo o mundo, ela tinha tudo pra ter virado uma Iugoslávia.
Referências:
Livro – the asean miracle
Artigo – Customary Practices of Musyawarah Mufakat: An Indonesian Style of Consensus Building
Artigo – Consensus and Democracy in Indonesia : Musyawarah-Mufakat Revisited
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