Geopolítica Energética #03 – A geopolítica envolvida no mercado de Gás Natural Liquefeito
*Luis Augusto Medeiros Rutledge é Engenheiro de Petróleo e Analista de Geopolítica Energética. Possui MBA Executivo em Economia do Petróleo e Gás pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Pós-graduado em Relações Internacionais e Diplomacia pelo IBMEC. Atua como pesquisador da UFRJ, Membro Consultor do Observatório do Mundo Islâmico de Portugal, Consultor da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior – FUNCEX, Colunista do site Mente Mundo Relações Internacionais e autor de inúmeros artigos publicados sobre o setor energético.
A geopolítica envolvida no mercado de Gás Natural Liquefeito
Entre as inúmeras consequências da guerra da Ucrânia, a interrupção do fornecimento de gás russo e a decisão política de eliminar a influência de Putin na demanda energética europeia causaram impacto direto na geopolítica energética global. Entretanto, desde o início dos conflitos no leste europeu, a importância do gás natural liquefeito (GNL) na infraestrutura de geração de energia para a União Europeia (UE) aumentou acentuadamente. O GNL tornou-se essencial para o aprovisionamento energético a curto e médio prazo e pode servir como uma ponte importante para a transição energética e o alcance das metas climáticas a longo prazo. Ao mesmo tempo, a guerra reconfigurou o mercado de energia e, principalmente, o mercado global de GNL. E isso, agora está se movendo na área de tensão entre mecanismos de mercado e rivalidade geopolítica. A guerra tem consequências pesadas para a estrutura, fluxos comerciais e atores do mercado, bem como suas interações e preferências.
É por isso que países da UE realinharam suas prioridades de política energética em favor da segurança do abastecimento. Tendo em vista as rivalidades e conflitos globais, países como Alemanha e Holanda agora também estão procurando mais intensamente princípios orientadores para moldar as relações internacionais de energia e mecanismos de governança. Este é um desafio fundamental em matéria de política energética e climática.
A guerra na Ucrânia provocou uma mudança profunda no mercado de GNL, tanto no mercado e nas estruturas regulatórias quanto nas interações dos atores. O caso do GNL exemplifica a crescente complexidade na interação entre a geopolítica e os mercados globais de energia e em seu funcionamento. Observamos que os choques geopolíticos mudam as interações entre os participantes do mercado. Além disso, causam rupturas significativas nas condições, instituições e atores de mercado e na ordem mundial.
Três conclusões importantes podemos apontar sobre os efeitos de conflitos globais no setor energético.
Primeiro, a guerra do leste europeu trouxe uma reorganização dos fluxos comerciais de GNL e acelerou a interconexão global dos mercados de gás natural. A dissociação europeia do gás de gasoduto russo impulsionou esse desenvolvimento, mas também aumentou a concentração do mercado em favor dos EUA e do Catar. Ao mesmo tempo, a China expandiu sua influência como o maior importador de GNL e potencial centro comercial (hub). Como resultado, a concorrência com os centros de demanda asiáticos foi ainda mais alimentada.
Ao mesmo tempo, a guerra acelerou a fragmentação da ordem internacional e enfraqueceu o apoio às instituições multilaterais. As estratégias de GNL e as preferências contratuais dos principais intervenientes refletem os interesses geopolíticos e de mercado, tendo como pano de fundo um ambiente internacional de confronto e uma fraca governação energética. A combinação de mercados globalmente conectados e a crescente concorrência da política de poder promove o abuso dos mecanismos de mercado e aumenta os riscos de oferta.
Em segundo lugar, os contratos de fornecimento ganharam importância geopolítica no mercado de GNL. Em tempos de mecanismos de governança disfuncionais, as preferências contratuais cristalizam as relações de poder que moldam as parcerias energéticas. Isso reforça a tendência ao bilateralismo e ao transnacionalismo em detrimento dos fóruns multilaterais, embora, paradoxalmente, mecanismos de mercado como fluxos comerciais, indexação de preços e correlação de preços regionais continuem a determinar o mercado.
Em terceiro lugar, a dissociação da Rússia não reduziu os riscos de oferta da UE, mas os deslocou. A dependência do GNL continua a representar riscos para a autonomia estratégica da Europa, uma vez que implica em novas dependências, volatilidade dos preços e incertezas do aprovisionamento. Em última análise, a guerra expôs as fraquezas da UE como ator da política energética e as deficiências de seu modelo de relações energéticas globais. Os mercados globais de energia continuam caracterizados por modelos diferentes e às vezes contraditórios, o que exacerba as diferenças de preferência e as tensões no mercado de GNL. O dilema entre a segurança do aprovisionamento e os objetivos climáticos tornou-se, assim, mais visível.
A UE deve retirar uma lição fundamental destas conclusões: antes de tomarem medidas politicamente compreensíveis no setor da energia – como a decisão de se dissociarem definitivamente do gás por gasoduto da Rússia ou de impor sanções no setor petrolífero – devem fazer uma diplomacia antecipada e acompanhar a evolução do mercado, as tendências geopolíticas e as suas influências mútuas de forma clara e diferenciada.
O mercado de GNL mostra que medidas politicamente motivadas, por exemplo, para maior segurança do aprovisionamento, nem sempre conduzem a esse objetivo. Dependendo da fonte de energia, da tecnologia e da estrutura do mercado, as decisões políticas podem ter um impacto contraproducente na resiliência, na estabilidade e nos custos. O sucesso de tais medidas depende, portanto, das estruturas de mercado, das interações dos atores e, por último, mas não menos importante, do estado da ordem internacional.
Daqui resultam três recomendações básicas de ação para a UE em relação ao GNL: em primeiro lugar, devem manter e diversificar simultaneamente as relações energéticas existentes, desenvolver a flexibilidade pragmática e construir novas parcerias. Isto somente é possível se existir um direcionamento do papel do gás natural – em particular do gás natural liquefeito – no desenvolvimento futuro da procura de gás no sistema energético. Em segundo lugar, devem trabalhar no sentido de uma melhor coordenação das ações de mercado entre os principais produtores de GNL e os consumidores atuais e emergentes, especialmente na Ásia. Em terceiro lugar, eles devem considerar a criação de mecanismos multilaterais para o desenvolvimento de novos mercados de energia verde, como o hidrogênio, a longo prazo. Dessa forma, as vantagens dos mercados globais – como redução de custos, padronização e escalonamento mais rápido – poderiam ser exploradas e, ao mesmo tempo, as tensões políticas poderiam ser reduzidas.
Em resumo, os EUA e o Catar são os players dominantes do mundo no mercado de GNL. A China desempenha um papel ambivalente, enquanto a Europa está em competição acirrada com os compradores asiáticos. A parceria de GNL entre a UE e os EUA é extremamente necessária neste momento. No entanto, para evitar tensões geopolíticas e aumentar a resiliência do mercado, é necessária a maior diversificação possível das relações de fornecimento e abordagens multilaterais, como uma espécie de concerto de potências de GNL ou, a longo prazo, uma aliança com diversidade de novas fontes energéticas como, por exemplo, o hidrogênio.