A Arte do Constrangimento

O constrangimento é uma arma poderosa, em tempos de revisionismo, negacionismo, obscurantismo e polarização, a arte de constranger se torna um importante aliado para os que têm embasamento teórico/prático para dizer algo. Evitar, sempre que possível, o dizer pelo dizer, não cair na armadilha da inconsistência para não se igualar aos vazios. Reconhecer que existem assuntos em que não há um mínimo conhecimento necessário para interagir e/ou o domínio necessário para expor aquela pessoa ao ridículo que ela merece é fundamental.

Segundo o livro “Código de Honra de Appiah”, durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de 7,5 centímetros. A prática durou mais de mil anos e acabou em rápidos 20. Appiah pesquisou e descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses. E foi decisivo para que a prática fosse proibida.

Assim também ocorreu com os duelos na Inglaterra. Se a prática de atar os pés era vergonhosa, a dos duelos passou a ser vista como ridícula e patética, e ambas acabaram. Ele diz também que, no Brasil, a escravidão no início era normal, depois, num curto período ficou “menos normal” e, em seguida, algo abjeto, a ponto de netos não entenderem como seus avôs foram capazes de escravizar. No século XIX, um funcionário chamado Kang consegue convencer o establishment chinês de que a prática de atar os pés era, além de todos os males, ridícula e envergonhante. E o fez comparando outros povos que não amarravam pés.

O jurista Lenio Streck, defensor do constrangimento, alega que:

“Para além desse lugar e sem os atributos desse poder de fala – perde-se no entremeio de outras institucionalidades. Falo do solipsismo judicial, pois. Ele pode não ter ou sofrer os necessários constrangimentos epistêmicos na sua função. Gadamer diz que, se queres compreender um texto – e textos são eventos, fenômenos – deves deixar que este, o texto, lhe diga algo. Isto quer dizer que não devemos ignorar esse grau mínimo de objetividade. É o que chamo de mínimo “que é”. Nesse sentido, a realidade constrange. A estrutura, a intersubjetividade, a tradição, enfim, essa linguagem pública constrange a todos nós cotidianamente para evitar que saiamos por aí fazendo coisas solipsistas. Não posso trocar o nome das coisas, não posso assujeitar as coisas.”

Lenio, denomina de “viciados em si mesmos”, que “ignoram o constrangimento epistemológico”, e que “a saída perversa para se defender da angústia da castração é a válvula de escape do sujeito solipsista em face do constrangimento que a linguagem pública lhe impõe.

Com o advento da internet e seus algoritmos, as pessoas estão se fechando cada vez mais em seus mundos e interagindo unicamente com seus semelhantes, criando bolhas mentais/sociais, que somadas a grande polarização que o país vive, torna-se uma eterna reprodução do mundo do eu.

Esses novos narcisistas passam a ter a impressão de que o mundo concorda com suas convicções e que eles representam a sua vontade. Essa postura perigosa para o convívio social precisa ser combatida, a história mostra que o campo do extremismo e do isolamento de ideias é um precedente perigoso, o país já está no nível de necessidade de defesa do óbvio, como a dos direitos civis e individuais, o que vem depois?

 

ESPIRAL DO SILÊNCIO

A espiral do silêncio é uma teoria de 1977 no campo da ciência política criada pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann, sua ideia central é uma espécie de “contra-constrangimento”, uma vez que busca constranger o diferente na base da força, da agressão e da zombaria, para que com o passar do tempo, menos pessoas exponham seus pontos de vista contrários dando a falsa impressão de que todo mundo está de acordo com algo.  Esse comportamento gera uma tendência progressiva ao silêncio denominado espiral, visto que ao não expor essa ideia, o indivíduo automaticamente compactua com ela, assim, outras pessoas que compartilham dessa opinião também não a verbalizam.

 

O resultado é um processo em espiral que incita os indivíduos a perceberem as mudanças de opinião e a segui-las até que uma opinião se estabeleça como atitude prevalecente, enquanto as outras opiniões são rejeitadas ou evitadas por quase todos.

Nessa teoria o importante são as opiniões dominantes, e estas tendem a se refletir nos meios. Sobre essa teoria é importante lembrar que existe um isolamento dos indivíduos no silêncio, quando estes têm opiniões diferentes das veiculadas pela mídia.

A Teoria do Espiral do Silêncio ajuda a entender como a mídia funciona em relação à opinião pública e silencia suas ideias, através de três mecanismos pelos quais a teoria influencia a mídia sobre o público: Acumulação, que se refere ao excesso de exposição de determinados temas na mídia; a consonância, que se refere à forma semelhante como as notícias são produzidas e veiculadas e finalmente a Ubiquidade, que se refere à presença da mídia em todos os lugares.

Essa tentativa de calar o oposto e criar um efeito manada na opinião pública, é claramente visto nas redes sociais através de campanhas de desinformação criadas por robôs, principalmente no Twitter e Whatsapp. É contra elas que a arte do constrangimento deve ser mais incisiva, por mais improvável que sejam as notícias vinculadas, sempre haverá muita gente disposta a acreditar.

O caldeirão social vigente no país é a temperatura ideal para a proliferação desse vírus, as pessoas estão odiosas, sedentas por algum revanchismo contra quem nem elas mesmas sabem quem. Ao se deparar com notícias igualmente odiosas, mesmo que absurdas, essas pessoas esnobam a racionalidade, pois quando entra o sentimento, sai a razão; quando entra a cólera, sai o equilíbrio.

Existem diversas táticas e posicionamentos para combater a espiral, aqui serão mencionadas duas delas.

TEORIA DA DECISÃO

Pegando novamente gancho nas teses jurídicas de Lenio Streck, a Teoria da Decisão se torna um interessante teorema para rebater posicionamentos contraditórios, idolatrias políticas e jurídicas, e acima de tudo, combater o maniqueísmo que tomou conta da população.

Essa tese consiste em fazer três perguntas fundamentais identificar algum ativismo judicial (vamos considerar aqui apenas ativismo), diferenciando-o da judicialização da política: primeiro, está o Judiciário diante de um direito fundamental, subjetivamente exigível? Em situações similares, esse mesmo direito pode ser concedido a toda e qualquer pessoa que o pedir? No mais, é possível transferir recursos das outras pessoas para fazer aquela ou um grupo feliz, sem violar a isonomia no seu sentido substancial, já levando em conta toda a força do Estado Social previsto na Constituição?

Somente quando algum questionamento receber resposta afirmativa que se deve ir para a próxima, e assim para a terceira. Caso haja uma resposta negativa, o argumento fica por aí mesmo em sua fragilidade subjetiva. Em suma:

1 – Se o argumento for a favor de algo ou alguém, transforme a frase em negativa e veja se a pessoa ainda apoia seu ponto de vista, e faça o mesmo caso a argumentação seja negativa.

2 – Caso positivo, questione se sua argumentação vale para todos os casos e/ou todas as pessoas ou cargos daquele ponto de vista.

3 – Passando pelo segundo ponto como afirmativo, questione se sua argumentação permaneceria como justa caso fosse uma espécie de lei constitucional, se é algo que vale a pena que o Estado se mobilize para agir sobre.

Dificilmente uma argumentação intoxicada de subjetividade e extremismo dos dias de hoje passará incólume. Caso seja uma discussão muito ampla ou específica em que esses termos mais jurídicos não abarquem, há uma técnica mais abrangente para tal, o método Socrático.

 

MÉTODO DE QUESTIONAMENTO SOCRÁTICO

 

O método de questionamento socrático é uma técnica de investigação filosófica feita em diálogo, que consiste em condução a um processo de reflexão e descoberta dos próprios valores. Através de perguntas simples, quase ingênuas que têm por objetivo, em primeiro lugar, revelar as contradições presentes na atual forma de pensar, normalmente baseadas em valores e preconceitos da sociedade, e auxiliar assim a redefinir tais valores, aprendendo a pensar por si mesmo.

O questionamento Socrático elucida a importância de questionar no aprendizado, esclarece a diferença entre o pensamento sistemático e fragmentado, ensina a escavar debaixo da superfície das ideias, ensina o valor de desenvolver questionamento de nossas mentes em cultivar um aprendizado mais profundo. Um exemplo:

Esclareçam seus pensamentos.

e.g., ‘Por que você diz isso?’, ‘Você poderia explicar mais?’

  1. Desafiando sobre suposições.

e.g., ‘Esse é sempre o caso?’, ‘Por que você pensa que essa suposição entra aqui?’

  1. Evidencia como uma base para argumentar

e.g., ‘Por que diz isso?’, ‘Existe algum motivo para duvidar dessa evidência?’

  1. Pontos de vistas e perspectivas alternativas

e.g., ‘Qual é o contra argumento?’, ‘Alguém pode ver isso de outra maneira?’

  1. Implicações e consequências

e.g., ‘Mas se… aconteceu, o que poderia resultar?’, ‘Como… afeta…?’

  1. Perguntar sobre a questão

e.g., ‘Por que você acha que eu perguntei essa questão?’, ‘Por que a questão foi…?’

 

Outro exemplo:

1 – Resuma o argumento da pessoa: Identifique o que ela afirma!

2 – Peça por evidências: Antes de começar a realmente desafiar o ponto de vista de alguém

3 – Desafie as afirmações feitas: As ideias são como blocos de construção. A conclusão está apoiada sobre outros blocos, alguns dos quais podem não estar comprovados. Quando uma ideia é infundada, ela é apenas uma premissa — e premissas podem, muitas vezes, estar erradas.

4 – Encontre a exceção: Identifique um conjunto de circunstâncias nos quais a afirmação dessa pessoa seria falsa.

5 – Peça à pessoa que reformule seu argumento: Depois que admitir que a exceção existe, ela deve reformular seu argumento para levá-la em consideração.

6 – Continue a fazer questionamentos ou levantar exceções: Você pode pedir à pessoa que defina o que ela realmente quer dizer enquanto faz perguntas que sirvam para orientá-la se ela parecer confusa.

A arte do questionamento socrático está intimamente conectada com o pensamento crítico porque a arte de questionamento é importante para a excelência do pensamento. O que a palavra “socrática” adiciona para a arte do questionamento é sistematicamente profundo e um interesse permanente em acessar a verdade ou plausibilidade das coisas.

Ambos, pensamento crítico e questionamento socrático procuram o significado e a verdade. O pensamento crítico fornece as ferramentas racionais para monitorar, acessar e talvez reconstituir ou redirecionar nosso pensamento e ação. O questionamento socrático ecoa explicitamente em enquadrar o auto direcionamento, disciplinar questões para atingir um objetivo.

 

Obviamente que esse texto se refere exclusivamente ao conflito no campo das ideias, como o nome sugere, caso contrário, seria uma espécie de fascismo, um totalitarismo combatido justamente na tese da Espiral do Silêncio. O embate em prol do constrangimento, é o debate que visa o nascimento e a sobrevivência da pluralidade de ideias e posicionamentos.

Constranger vira uma necessidade na busca por posicionamentos mais centrados (tanto no sentido figurado, quanto no sentido político, de trazer as pessoas mais ao centro do espectro político), ainda que haja essa dificuldade de falar com “o outro”, sempre que houver essa chance, é preciso aproveitá-la. Caso contrário, “vence” quem fala mais alto e os bons caem no silêncio se equivalendo aos histéricos.

Há de se construir as bases para um pensamento crítico que denuncie equívocos, por isso, a sociedade só evolui quando sente vergonha.

Só a vergonha redime.

 

https://www.conjur.com.br/2018-out-27/observatorio-constitucional-homeschooling-tres-perguntas-fundamentais-teoria-decisao

https://www.conjur.com.br/2019-jul-18/senso-incomum-parcialidade-judicial-vergonha-redimir

https://www.conjur.com.br/2011-nov-17/ministro-fux-presuncao-inocencia-regra-nao-principio

https://www.infoescola.com/filosofia/espiral-do-silencio/

https://www.infoescola.com/pedagogia/metodo-socratico/