Por que o Sul Global deveria torcer pela vitória de Trump

A expressão Sul global nada mais é do que a versão usada atualmente para se referir às regiões periféricas e semiperiféricas dos países do sistema-mundo, em outras palavras, as nações em desenvolvimento ou Países do Terceiro Mundo. Esse pequeno artigo visa provocar uma reflexão usando acontecimentos do passado e do presente para fazer algumas conjecturas sobre o futuro e até brincar de “e se”.

A principal premissa das análises a seguir é pensar nos EUA como uma potência hegemônica em declínio, ou seja, uma nação que pode tomar uma medida brusca e inesperada a qualquer momento visando manter sua liderança global, e que, por isso mesmo, quanto mais problemas internos e maior necessidade de “voltar-se para dentro”, menos capital político, econômico e tempo hábil para manobras no exterior são possíveis. Sem coesão interna não existe política externa.

Ter isso em mente e perceber que exatamente por esse fator imperial a maioria das questões centrais mundiais passa pelo crivo bipartidário de “segurança nacional” estadunidense, ajuda a derrubar a simplória visão favorável aos Democratas em detrimento dos Republicanos.

E segurança nacional não é meramente uma visão de superioridade militar ou de alianças estratégicas, mas um conjunto de relações que sustentam toda a base cultural do país. Ser a maior economia do mundo, ter o dólar como moeda global que permite que seus cidadãos consumam três vezes mais o que produzem e permanecer exportando seus valores através da arte como cinema, músicas e jogos. Continuar sendo visto como principal ator de hard ou soft power é o pilar que permite o “American way of life”, sem ele, toda a sociedade desmorona.

Brasil

Se o Biden for eleito, o Brasil ficará isolado no cenário internacional, já que seu outro aliado central, Benjamin Netanyahu, está ocupado demais com seus problemas internos de corrupção. As análises do momento são que isso será bom para o enfraquecimento do Bolsonaro e do bolsonarismo, um ledo engano. A ingenuidade começa quando não há distinção entre o criador e sua criação. Cada movimento rumo ao centro que Bolsonaro tenta, toda militância virtual que o apoia desaba em críticas e ameaças, fazendo-o recuar de olho em 2022. O que deixa a dúvida no ar: O Bolsonaro criou o monstro ou os monstros criaram Bolsonaro? Essa distinção é a fundamental para entender a atual encruzilhada que o país se encontra.

Portanto, para evitar ser trocado por outro pseudo outisder ainda mais extremista, o que não falta nesse país, é imprescindível para o presidente continuar com sua tática de confronto direto e constante, em um cenário de guerra tudo é permitido e não há espaços para reflexões.

O grande problema com a eleição de Biden tem nome: Amazônia. Tudo o que um movimento neofascista como o bolsonarismo precisa é de um inimigo externo que possa ser visto como uma ameaça iminente à soberania nacional. Todo e qualquer comentário sobre a floresta será usado como gasolina nos corações e mentes dos seus apoiadores que acreditam que há um plano mundial de dominação que visa acabar com culturas e religiões patrocinado por multibilionários como o George Soros.

Há outra questão que pouca gente considerou: Venezuela. Como dito no começo, questões de soberania são bipartidárias aos estadunidenses, e obviamente Caracas é uma delas. Equivoca-se e muito quem acredita que os Democratas vão analisar o país de outra forma, controlar a Venezuela significa controlar ainda mais o petróleo e poder interferir no preço mundial. Ainda que os EUA sejam autossuficientes, as variáveis de poder e controle são imensas, assim como, as de preço e qualidade.

A nação norte-americana detém grandes reservas de energia, mas um tipo de extração mais cara, quando o valor do petróleo cai muito, compensa mais importar petróleo do que extrair o gás de Xisto, sua fonte de energia. Tanto é que diante da crise interna da OPEP de 2019 e a disputa entre sauditas e russos que levou os preços da commodity para o chão, os EUA interviram fortemente como um mediador crucial nas negociações.

Para além desse fator, há também a problemática aliança da nação caribenha com russos e chineses em pleno quintal norteamericano, a Doutrina Monroe nunca foi totalmente abandonada, há no íntimo dos estadunidenses que a América é sua zona de influência e isso não pode acontecer. Alguém duvida que Biden possa fazer algum tipo de proposta de aliança com o governo Bolsonaro por ajuda contra a Venezuela em troca de sossego e não interferência em questões climáticas? Alguém acha mesmo que os Democratas são esse pilar de moralidade e preocupação com o meio ambiente? Não, a eleição de Biden não trará beneficio algum ao Brasil, muito pelo contrário.

Eurásia

É sabido por documentos oficiais que China e Rússia são tidas como rivais dos EUA, e por óbvio, questão bipartidária de soberania nacional. A especulação que alguns analistas colocam em favor ao Biden é sobre a diminuição da guerra comercial com os chineses, mas enquanto arrefecem o lado econômico, intensificam a guerra de narrativas e as híbridas, nem os próprios analistas chineses são unânimes sobre qual partido no poder seria melhor.

Aqui a Rússia será considerada Sul Global por ser uma potência antagônica aos interesses do Stablishment, e com ela é certo que os Democratas, criadores da conspiração chamada Russiagate e da tentativa de anos de atrelar ao Trump a imagem de amigo de Putin, são mais nocivos do que os Republicanos. O episódio do Euromaidan na Ucrânia em 2014 e 2015 e o escândalo da NSA divulgado pelo Snowden também foram em administrações democratas. O partido não teve o menor pudor em espionar a Petrobras, a Dilma, e até mesmo a Merkel e os alemães, seus aliados de primeira ordem.

Há outro país que há muito figura na lista de “eixo do mal” dos memorandos estadunidenses: o Irã. Por mais que os democratas tenham feito um esforço elogiável para as negociações nucleares com o país, não quer dizer que teriam a mesma postura agora em 2021. O cenário é outro, nesse ínterim, a desconfiança dos persas para com o ocidente aumentou, assim como sua parceira com a China. Em julho, os dois países assinaram um acordo econômico e de segurança no valor de US$ 400 bilhões.

Em suma, tanto democratas como republicanos devem ter a mesma postura em relação ao Irã e China, enquanto os democratas devem ser mais assertivos com a Rússia. A eurásia uníssona e a mera possibilidade de uma união Eurasiática são o grande temor de Washington, e novamente, questão de soberania nacional.

Essa contenção é antiga, em 1919 Halford Mackinder publicou o conceito de Heartland, que em grande medida e em versões atualizadas, é utilizado ainda hoje. Segundo sua ideia, a vasta região que engloba parte da Europa, norte da África e oeste da Ásia representa a maior porção de terra no mundo sendo capaz de criar o exército anfíbio mais temido da terra caso alguém tenha a capacidade de unificar a região que o autor chama de Ilha-Mundo.

Sudeste Asiático

No período pós-Segunda Guerra Mundial, o mundo ignorou as nações do Sudeste Asiático, região marcada por ser um caldeirão étnico, linguístico, religioso e econômico. Nesse período de independências recentes emergiu uma série de confrontos, revoluções, guerras, guerras por procuração, separatismo, disputas territoriais, divisão e desconfiança, até de “Segundo Oriente Médio” a sub-região foi chamada. Depois de um processo árduo, eles mesmos orquestraram pactos e organizações multilaterais para estabelecer a paz e a cooperação.

Então na administração Obama, recordista no assassinato de suspeitos de terrorismo via drone, veio o novo norte da política externa, o pivô para Ásia, o movimento de olhar menos para o Mediterrâneo e mais para o leste e sudeste asiático visando conter o avanço e a influência chinesa em seus vizinhos já diante de projeções de ser ultrapassado pelo Império do Meio dentro de poucos anos. Supor que os republicanos fariam algo diferente é ingênuo, essa ênfase do plano de 2012 serve apenas para enfatizar o argumento que vem a seguir.

O sucesso do sudeste asiático é a prova que a estabilidade regional depende justamente do fato de estar ausente das atenções das grandes potências, e não o contrário como muita gente acredita. Um exemplo prático é o histórico acordo de paz entre Timor-Leste e Indonésia, o próprio Sergio Vieira de Mello, principal responsável pela assinatura, e sua esposa Carolina Larriera atribuíram o êxito da missão ao fato de estarem fora do radar e do debate internacional.

A ironia é que a região pode virar um segundo Oriente Médio justamente quando as potências mundiais olham para ela. A diversidade humana dentro de um espaço geográfico bem apertado é ideal para a implantação de guerras híbridas e mudanças de regime. Somente nos últimos quinze dias, os EUA receberam em Washington o ministro da Defesa da Indonésia que há vinte anos sofria sanções por ter assumido tortura e morte de manifestantes pró-democracia em seu país na ditadura dos anos 90 e ignoraram prisões recentes de ativistas pró democracia e Direitos Humanos no Vietnã horas após uma conferência oficial entre ambos os países sobre esse tema e liberdades individuais.

A Europa sancionou apenas o Camboja, aliado histórico da China, por violações aos Direitos Humanos ao mesmo tempo em que também estreita relações com a ditadura comunista do Vietnã. A partir dessas movimentações ambíguas e hipócritas desequilíbrios se acentuam e conflitos nascem, especialmente em uma região em que alguns países enfrentam problemas históricos com minorias étnicas chinesas.

Conclusão

A dominação e subjugação estão no cerne do nascimento dos EUA como país unificado e não apenas algumas colônias vizinhas que fazem comércio. Ainda no século XIX, criou-se a Doutrina do Destino Manifesto, uma crença que os estadunidenses tinham não somente como dever moral de superioridade, mas como missão divina expandir-se para o oeste e levar o progresso com a benção de Deus para povos atrasados.

A ideia de que esse povo era escolhido e possuía virtudes e instituições superiores aos demais foi responsável por genocídio aos povos nativos, guerra com a Espanha, guerras com o México e até a consideração de anexação de todo o território mexicano. Ironicamente rejeitada por políticos racistas que viam com desaprovação incluir um povo não branco na nação caucasiana.

Em seus primeiros cem anos, o Estado se emancipou, unificou-se e aprendeu que a guerra é a melhor forma para o enriquecimento através da anexação de territórios e subordinação de governos, enquanto a religião, o instrumento necessário para desumanização do outro que abre caminho para os crimes mais bárbaros que o ser humano pode cometer.

Vem depois, a Doutrina Monroe com sua política do Big Stick, o apoio e patrocínio de diversos ditadores sanguinários desde que comprometidos com o sistema capitalista e a Guerra ao Terror que se estende até os dias hoje.

O chamado excepcionalismo americano é isso, a união de fatores sociais, religiosos e econômicos que formaram as raízes dos traços culturais desse povo, que desde então, jamais ficou mais de dez anos sem guerrear. Por isso, tudo que acontece no mundo precisa passar pelo seu aval e tudo que o ameace é questão de soberania nacional, no imaginário coletivo, nada menos que ser hegemônico basta.

Usando da ferramenta do empirismo, pretendeu-se aqui reforçar o argumento da belicosidade inerente do império estadunidense, projetar cenários futuros e expor como o planeta pode se beneficiar da instabilidade e imprevisibilidade de Donald Trump, que possui forte rejeição mesmo em seu partido diante de um sistema que o não suporte implica em apoiar um rival ideológico. Há diversos caciques republicanos que declaram voto ao Biden abertamente e outros que o deixam implícito, somente uma figura tão divisora como essa pode fazer com que o Império ceda sem poder de fogo para uma última cartada catastrófica.