O esgotamento da ordem mundial vigente e o salto para o desconhecido
O século XXI traz para a ordem liberal vigente desafios imensos que colocam sua legitimidade em xeque. Assim como a Covid19 deverá ser tratada como o grande marco do novo período, a falha das democracias liberais em lidar com ela em comparação com os baixos casos e mortes de alguns países da Ásia, Oriente Médio e África notadamente desrespeitadores de direitos humanos, pluralidade política entre outros fatores, também será destaque.
Ironicamente, a crise ocorre justamente do expansionismo da globalização e da interdependência dos Estados periféricos, é como se os países em desenvolvimento dissessem para os já desenvolvidos: “Tudo bem entendemos a regra do jogo, agora é nossa vez”. Mas de repente, o discurso de liberalização e de queda de barreiras tarifárias e não tarifárias dos anos 90 deixaram de ser usadas pelos detentores do poder, e a resposta foi justamente inversa: Nacionalismo e protecionismo.
Com o fim da Guerra Fria e a dita vitória do capitalismo liberal sobre economias fechadas de países comunistas, e ao contrário desse período que foi marcado por patrocínio de ditaduras de ambos os lados, muitos países foram se abrindo voluntariamente visando o benefício da nova ordem global marcada por abertura e integração. É natural que crescimento e desempenho atraiam seguidores, o problema é que agora, os bons exemplos de economias superavitárias são antagônicos às liberais.
O momento atual acaba sendo marcado pela incerteza generalizada, uma mistura da crise econômica de 1929 com a turbulência política e social do mundo pós-Segunda Guerra Mundial. Os alicerces de longas décadas estão danificados e nada mais amedronta a humanidade do que a dúvida.
Sociedade pós-industrial
Os últimos anos do século XX imprimiram uma nova configuração social com destaque para a economia do imaterial: criatividade, comunicação e tecnologia. A criação virou tema crucial para as econômicas; o setor de serviços ultrapassando o industrial; e a fronteira tecnológica como principal expoente de riqueza.
Com a chegada do novo século veio a Revolução 4.0, também chamada de Quarta Revolução Industrial, caracterizada por um conjunto de tecnologias que permitem a fusão do mundo físico, digital e biológico. A tendência é o aumento do fosso entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre indústria de vanguarda e as demais, é preciso entender as oportunidades e os riscos de forma a criar vantagem competitiva.
Hoje, o setor de serviços pesa mais do que o industrial no PIB de praticamente todos os países. Para Schumpeter, a produção de novas tecnologias e instituições, ao mesmo tempo em que criam novas perspectivas, também tornam obsoletas as anteriores em uma velocidade brutal. O que revelaria também um movimento de desconstrução destruidor.
Esse balanço entre construção e desconstrução a partir das inovações não se restringe apenas às tecnologias, assim como o advento do computador inutilizou a máquina de escrever, tornou-se urgente criar uma série de instituições jurídicas e sociais para contemplar esse novo ordenamento comunitário.
Matriz energética
Para muitos analistas, mesmo com a pandemia superada, algumas tendências vieram para ficar, como o aumento do trabalho remoto, o estudo via EAD e o e-commerce, resultando na diminuição do trânsito, dos deslocamentos físicos e das viagens internacionais, antecipando o fim da era do petróleo.
Se por um lado a descarbonização é evidente, por outro, a maior demanda por eletricidade e a necessidade de investir em novas tecnologias de energias limpas, como a eólica e a solar, tomam seu lugar. O aumento de carros elétricos, por exemplo, gera demanda por baterias mais duráveis.
Em discurso na Assembleia Geral da ONU, o presidente chinês, Xi Jinping anunciou que seu país se esforçará para alcançar a neutralidade de carbono até o ano de 2060. Há quem comemore e há quem diga que é uma meta impossível devido ao financiamento de Pequim em diversos projetos de infraestrutura poluidores da Nova Rota da Seda.
Mas para além da materialidade da questão, o importante é a sinalização do pronunciamento, a China é a maior poluidora mundial e maior investidora em energia limpa simultaneamente. Ao explicitar que tem como uma de suas principais metas a conversão de sua matriz energética, acelera a corrida pelo domínio tecnológico.
Na medida em que as fontes de financiamentos estatais para novos projetos de energia renováveis aumentam, as grandes empresas petrolíferas, que estão maciçamente no setor financeiro, pesam mais os riscos e as incertezas sobre a viabilidade de procurar novos campos de petróleo para exploração, materializando a crise no setor que está por vir.
Sistema financeiro
A nova postura isolacionista dos EUA é o flagrante exemplo do poder hegemônico incomodado com a perda de relevância no cenário global, um estresse do modelo socioeconômico atual que mostra sinais de esgotamento, marcado pela financeirização e achatamento da classe média doméstica.
Um período marcado por ausência de controles de capitais por parte dos Estados e desregulamentação generalizada dos sistemas financeiros. A produtividade mundial cresce cerca de 2,5%, 3% enquanto o dinheiro pode render 6%, 7% dentro do sistema financeiro. Hoje, as empresas preferem investir na bolsa e não em aumento de capacidade produtiva, a conta dessa distorção em algum momento chega.
Por outro lado, na visão macro, a capacidade produtiva mundial foi transferida para a Ásia em busca de lucros mais altos. A América Latina vende matéria-prima para a Ásia, que a transforma em produto de maior valor agregado e a vende para a Europa e EUA. Esse processo aumenta a pobreza e a desigualdade nos países centrais e gera crises políticas em regiões marcadas por estabilidade social.
Política cambial
Talvez não haja nenhum símbolo maior da ordem mundial criada no pós-guerra do que o dólar. Em outubro, uma matéria do Financial Times gerou repercussão ao sugerir que o valor da moeda retrairá cerca de 35% até o final de 2021. Segundo ela, a razão seria “uma interação letal entre um colapso da poupança doméstica somada ao déficit da conta corrente”.
Enquanto o impasse político interno no país se agrava e o valor do dólar cai perante rivais de outras moedas fortes, em julho, a Europa anunciou o “Fundo de Recuperação”, também chamado de “UE da Próxima Geração”. Nele foi estabelecido um valor de € 750 bilhões (US $ 858 bilhões) para estimular as economias do bloco e finalmente estabelecer uma política fiscal pan-europeia, o valor do euro deve ser impulsionado.
O fator externo da provável depreciação robusta é o movimento internacional liderado por Rússia e China de deixar de possuir reservas em dólar para evitar possíveis sanções. Em 2018 o Banco Central da Rússia reduziu drasticamente a porcentagem de seus ativos estadunidenses, passando de 29,9% para 9,7%, as reservas em dólar do Banco Russo decaíram de 45,8% para 22,7%.
A China possui mais da metade das suas reservas cambiais em dólar, algo em torno de US$ 3,1 trilhões e mais de US$ 2 trilhões em ações de investimento externo, a maior reserva do mundo e boa parte em países desenvolvidos.
No primeiro trimestre de 2020, a participação em dólar do comércio bilateral Rússia e China caiu abaixo de 50% pela primeira vez. Até 2015, aproximadamente 90% das transações entre eles eram realizadas em dólares. Após a guerra comercial o movimento foi intensificado, já em 2019 o valor tinha caído para 51%. De 2016 a 2020, os EUA perderam 4% das reservas internacionais, caindo de 65% para 61%, três vezes mais que o euro que vem em segundo lugar.
Conclusão
A guerra comercial entre EUA e China é uma disputa em diversas frentes para decidir quem tem o poder para fixar as novas regras burocráticas para o mundo simbiótico que está nascendo. O aprimoramento tecnológico trouxe a difusão de todas as áreas do conhecimento, não é por coincidência que o mundo se encontra nesse entrave.
Ainda que haja esse acoplamento de temas, há uma assimetria na velocidade em que eles se cruzam. Diferentemente de todos os outros períodos, os países em atrito dependem um do outro, o desacoplamento financeiro não pode ser feito na mesma velocidade do enérgico nem do tecnológico.
Washington precisa dos US$ 5 trilhões que estão no poder dos chineses, e Pequim não pode se desfazer abruptamente dos dólares que possui, uma queda abrupta da moeda estadunidense seria catastrófica para a economia do Império do Meio.
Nenhuma moeda no mundo teve um aumento maior na participação global nos últimos vinte anos como a chinesa. Em 2001 representava 0% e pulou para 4,3% em 2019, no mesmo período o dólar ficou estável entre 89% e 88%, com a exceção do Yuan, todas as outras moedas caíram.
Pequim pretende liderar a geração de investimento em infraestrutura e se consolidar como líder da fronteira tecnológica para se firmar como potência, e para isso, precisa aumentar sua capacidade produtiva para depender menos da cadeia global de suprimentos que está sendo minada pelos EUA com a guerra comercial.
Nem tudo hoje é inédito, os séculos XVIII e XIX trouxeram o carvão como principal fonte de energia e os ingleses como potência mundial, o século XX seguiu o mesmo trajeto com o petróleo e os EUA, seguindo esse paralelo muitos consideram que o século XXI trará as energias renováveis como fonte de energia e a China como principal potência. O desdobramento natural dos acontecimentos trouxe o planeta para esse momento crucial de salto para o desconhecido, cabe a cada nação tirar o máximo de proveito possível dessa dança das cadeiras
Referências
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