Ep 02: A Eterna Importância Energética do Norte da África – por Luis Rutledge

*Luis Augusto Medeiros Rutledge é engenheiro de petróleo e possui MBA Executivo em Economia do Petróleo e Gás pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, especializando-se em geopolítica energética. Membro Consultor do Observatório do Mundo Islâmico. Pós-graduando em Relações Internacionais pelo IBMEC. Possui 16 anos de experiência em Projetos de Pesquisa e Desenvolvimento entre a UFRJ e o CENPES/PETROBRAS. Analista de geopolítica energética e colunista do site MenteMundo Relações Internacionais, assina colunas de petróleo, gás e energia. Contato : rutledge@eq.ufrj.br

 

Análise Geral

Certamente, os impactos geopolíticos gerados pelos conflitos bélicos, em solo ucraniano, orquestrados por Vladimir Putin modificarão a atual formatação do suprimento energético global. E, neste novo cenário, alguns líderes europeus acreditam que um possível desabastecimento de óleo e gás possam ser compensadas pela região do Norte da África, onde há plena infraestrutura de gasodutos conectados à países europeus e centros de produção estrategicamente localizados perto de Espanha e Itália. Neste pensamento, dois países, temas centrais desta coluna, se destacam: Argélia e Líbia. Historicamente, os campos produtores no continente africano se iniciaram nos anos 1950, e, desde então, o Norte da África passou a compor o seleto grupo das regiões produtoras de petróleo.

Na Argélia, em 1956, e na Líbia, em 1959, foram descobertas grandes quantidades de petróleo que deram início ao grande potencial existente até os dias de hoje. Atualmente, o continente africano é responsável por quase 10% da produção mundial de petróleo e suas reservas de gás natural possuem 600 trilhões de metros cúbicos. Segundo os dados de 2020 da British Petroleum, a Nigéria liderava como o principal produtor de petróleo do continente africano, enquanto a Argélia permanecia na liderança em produção de gás natural, Tabela 1. Apesar do imenso potencial, questões de políticas internas, no caso da Líbia, e as históricas e complexas relações fronteiriças entre os países do Norte da África podem prejudicar as pretensões europeias. Sem mencionar, as relações amistosas do norte da África com a Rússia, que desagradam a EUA e grande parte dos países europeus. Desde os anos 2000, os russos intensificaram os esforços numa aproximação com o norte da África para desenvolver interesses econômicos e estreitar relações políticas com países da região. Portanto, analisar os potenciais energéticos e infraestrutura de abastecimento da região caminham em paralelo com análises dos eventos geopolíticos da região até os presentes dias.

Tabela 1 – Dados de Gás Natural em 2020.

                                                    Fonte: Statistical Review of World Energy 2021                                                      

 

Países Reservas Provadas

(Tmc)

Produção (Bmc) Consumo (Bmc)
Argélia 2,3 81,5 43,1
Egito 2,1 58,5 57,8
Líbia 1,4 13,3 *
Nigéria 5,5 49,4 *

*dados não disponibilizados

Argélia

A Argélia, um dos maiores produtores de gás do mundo, possui quase 2,4 trilhões de metros cúbicos de reservas comprovadas e está posicionada como o principal exportador africano. No início de abril, o governo argelino divulgou ser capaz de diminuir parte da aflição europeia, principalmente Itália e Espanha, quanto a um possível desabastecimento de gás natural. O governo argelino informou ao governo italiano a capacidade técnica de aumentar em 50%, via gasoduto Transmed, as exportações desta commodity para a Itália. Neste novo acordo, entre a empresa Sonatrach (Argélia) e Eni (Itália), o volume adicional representará 10 bilhões de metros cúbicos ao montante de gás contratado por ano até 2023-24. Em se concretizando, a Itália passará a receber no próximo ano algo em torno de 30 milhões de metros cúbicos. Segundo Abdelmadjid Attar, ex-ministro da energia da Argélia, o gasoduto Transmed tem capacidade máxima de 32 bilhões de metros cúbicos por ano, Figura 1. Vale ressaltar, que em 2021 a Rússia enviou 29 bilhões de metros cúbicos de gás natural aos italianos.

Outro importante acordo visa aumentar as atividades de exploração e produção de petróleo da Eni, em território argelino, com o objetivo de aumentar a oferta de óleo para os italianos. Em contrapartida, a empresa italiana assinaria um compromisso de investimento em setores renováveis, como: hidrogênio, captura e armazenamento de carbono e implementação de tecnologias de energia limpa.

Embora novos acordos Líbia-Europa pareçam atingir os laços existentes entre Argélia e Rússia, seria improvável um estremecimento desta relação no momento em que os russos procuram manter seus aliados políticos e comerciais. Da mesma forma o país norte-africano continuará com sua política equilibrada na manutenção das relações com os países europeus e Rússia. Recentemente, a Argélia demonstrou claramente sua política pragmática: se absteve das resoluções das Nações Unidas contra a Rússia, negocia fornecimento de gás natural aos europeus e manteve mantém a compra de armas oriundas do país dos Montes Urais.

Análises geopolíticas nos permitem pensar se Líbia e Rússia, que possuem grandes quantidades de gás natural, poderiam atuar com políticas coordenadas neste momento para seu benefício futuro. A grande verdade é que a longo prazo a Europa deverá diversificar seus suprimentos de gás natural e procurar fornecedores mais seguros. A Argélia, desde os anos 1960, tem sido um fornecedor estável aos Europeus, apesar de alguns conflitos internos. Enquanto que, por outro lado, a Rússia que começou suas exportações de gás natural na década de 1980, quando ainda era União Soviética, demonstrou ao longo do tempo o uso excessivo do gás natural como arma política.

 

Figura 1 – Rede de Gasodutos Argelinos
Fonte: Al-monitor

Influência Geopolítica em Magreb

Recentemente a Geopolítica Energética se mostrou presente e determinante para as diretrizes das exportações do gás argelino. Desde 2021, o gasoduto Magreb-Europa responsável pelo fluxo de gás natural entre dois continentes (África e Europa) e quatro países (Argélia, Marrocos, Espanha e Portugal) não é mais utilizado. E a interrupção de seu funcionamento não ocorreu por motivos técnicos e sim políticos e geoestratégicos. Este gasoduto, inaugurado em 1996, possui uma infraestrutura capaz de exportar cerca de 10 milhões de metros cúbicos por ano para Espanha e Portugal. Porém, os atritos políticos entre Marrocos e Argélia tiveram como um dos resultados o fechamento do gasoduto, por decisão do governo argelino.

Marrocos e Argélia, os países do Magreb, possuem rivalidades históricas e diretamente relacionadas com eventos ocorridos após o término da colonização da região. Disputas envolvendo a independência do Saara Ocidental, localizado no Norte da África e com fronteiras ao norte com Marrocos e com Argélia ao leste, vem sendo ao longo dos anos motivo de desgaste da relação internacional entre estes dois países, Figura 2. Desde 1975, quando a região em disputa foi entregue ao Marrocos e à Mauritânia pela Espanha, então país colonizador, começou a insatisfação argelina. E desde então, apoios em disputas fronteiriças se estendem.

Algumas das consequências das medidas políticas de fechamento do gasoduto Magrebe-Europa pelo governo argelino estão se refletindo nos dias de hoje. Marrocos intenciona comprar gás natural liquefeito da Espanha. E desta vez, realizar a operação ao contrário. Usar o gasoduto que anteriormente enviava gás da Argélia, via Marrocos, para a Espanha. Enquanto, uma parte da Europa vive a iminência do desabastecimento do gás russo, Marrocos atravessa uma crise geopolítica particular. Os marroquinos consomem 1 bilhão de metros cúbicos por ano, sendo quase 80% oriundos da Argélia e aplicados em centrais elétricas. Desde então, as atuais importações de GNL e as futuras importações oriundas da Espanha parecem as soluções imediatas num mundo de alta demanda de gás natural. Vale ressaltar que os preços de gás canalizados cobrados pelos argelinos são muito menores que os valores importados de GNL.

  Figura 2 – Saara Ocidental
Fonte: o mundo numa mochila

Líbia

Posicionada ao norte da África, a Líbia se destaca não somente pela proximidade territorial com o continente europeu, mas também pela segurança energética que seus reservatórios de óleo e gás a proporcionam. Com reservas comprovadas de petróleo girando em torno de 48 bilhões de barris e com recentes reservas descobertas, como o campo de Tahara, com capacidade estimada de produção de 14.000 barris/dia, a Líbia se destaca como um dos maiores produtores africanos e importante exportador de óleo no atual cenário mundial. Quanto ao gás natural, segundo dados oficiais da Statistical Review of World Energy da British Petroleum, a Líbia fechou 2020 com 1,4 trilhões de metros cúbicos de reservas comprovadas. Entretanto, o ministro do petróleo da Líbia anunciou que suas reservas de gás natural não são suficientes para cobrir a ausência de outro centro produtor.

Com as incertezas do gás natural na Europa, a Líbia geograficamente próxima, seria uma solução se não estivesse envolta num imenso caos político. Em 2010, a Líbia produzia 2 milhões de barris de petróleo por dia (bpd) e hoje as estimativas estão entre 700 mil e 1 milhão de barris por dia. As baixas produções atuais possuem relação com as milícias armadas de comércio ilegal de petróleo instaladas no país. Desde 2011, a instabilidade política ganhou contornos maiores após um evento crucial, a derrubada e morte do ex-ditador Muamar Kadafi. E desde então os conflitos são constantes e se refletiram em vários setores do país, sendo um deles o energético. A guerra civil líbia causou a paralização momentânea do gasoduto Greenstream, entre 2011 e 2012, que faz a importante ligação dos campos líbios ao mercado de gás italiano e foi mais uma nítida demonstração de quanto o setor de óleo e gás pode ser afetado por questões geopolíticas, Figura 3. Este gasoduto com capacidade máxima de fluxo de 11 bilhões de metros cúbicos por ano se tornou estratégico após os recentes eventos. No entanto, a infraestrutura atual é relativamente pequena.

Em 2020, outro choque nas receitas da Líbia. Perdas de quase 92% por causa de bloqueios de campos de petróleo e portos e, ainda, danos em tanques de armazenamento e dutos. Essas perdas gigantescas aos cofres do país foram causadas por conflitos armados entre o governo de Al-Sarraj e as milícias do marechal Khalifa Haftar. Após 8 meses de conflitos o governo conseguiu reabrir os campos e portos, além de obter números satisfatórios de produção de petróleo. A produção atingiu cerca de 1,25 milhão de barris por dia. Até os dias de hoje a incerteza caminha ao lado dos oleodutos e gasodutos líbios.

Atualmente, o país se encontra dividido entre instituições rivais do oeste e leste da Líbia. De um lado, apoiado pelo parlamento do leste, o ex-ministro Fathi Bachagha e de outro lado, Abdelhamid Dbeibah. Importante ressaltar os laços políticos existentes, Bachagha é aliado político de Khalifa Haftar que por sua vez é o braço político russo no território líbio. A diplomacia russa atua na Líbia fornecendo apoio militar através de mercenários denominados Grupo Wagner. Este exército particular de Putin também atua na Ucrânia no momento.

De fato, existe um interesse econômico da comunidade mundial na Líbia. No jogo geopolítico do momento os EUA, seus parceiros europeus e grande parte do Oriente Médio estão medindo esforços diplomáticos para colocar uma ordem no país e resguardar os interesses mútuos. A Líbia possui petróleo de extrema qualidade, custo baixo de exploração e produção e, ainda, reservas de gás natural que à custo de maiores investimentos em infraestrutura poderão aumentar sua produção diária. Porém, somente com estabilidade política a Líbia poderá trabalhar em prol de seu povo e beneficiar a Europa.

Figura 3 – Gasoduto Green Stream (Conexão Líbia-Itália)
Fonte: Entsog Transparency Platform

Referências

  • British Petroleum Statistical Review of World Energy 2021
  • Valor Econômico
  • africanews.com

 

 

 

 

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