Mandala – O sistema político do sudeste asiático
Nesse texto o islã foi deixado de fora propositalmente para um texto futuro e também por ter chegado com força na região posteriormente ao período aqui exposto (por volta do séc XVI)
Mandala – O sistema político do sudeste asiático
Maṇḍala é uma palavra conhecida da língua portuguesa e que tem origem no sânscrito e significa círculo. A etimologia e seu simbolismo têm tudo a ver com o que será exposto nesse texto.
O termo é usado para explicar o antigo sistema político do sudeste asiático, dificilmente outro cenário regional do planeta tenha essa semelhança: pequenos reinados ou federações girando em torno de grandes impérios com mudanças frequentes de apoios e controle.
Também é chamada de “política solar” ou “política galáctica”, por fazer referência aos planetas girando em torno do sol com “circulos concêntricos” representando ideologicamente a totalidade incorporando a unidade.
A palavra com origem indiana foi usada em uma tentativa local de traduzir para os europeus seu próprio conceito de Estado. Com raízes religiosas no hinduísmo e no budismo, a visão circular das Mandalas enfatiza a radiação de energia de cada centro de energia, bem como a base não física do sistema.
Influência da Índia e da China
Índia e China foram os grandes responsáveis pelo fornecimento de sistemas de escrita, literatura, política, hierarquia social e crença religiosa. Criando entre elas uma disputa por influência que é latente nos dias atuais.
Sincretismo é a palavra que define a região, fenômeno responsável por fazer dos países alguns do mais visitados do mundo, mesmo com baixa representatividade no sistema internacional ou polo cultural.
A infinidade de maravilhas arquitetônicas naquele pedaço não tão vasto do planeta é surpreendente, um grande legado de milênios de história da humanidade que hoje abriga inúmeros patrimônios da UNESCO.
A influência direta da Índia e da China remonta a pelo menos 150 AC, A Índia chega na região através do hinduísmo e séculos depois, com o budismo sem grandes intenções expansionistas, migratórias, coloniais, ou de algum tipo de controle. Sua influência centrou-se mais na cultura, religião, comércio e diplomacia.
A China influencia a sociedade com o confucionismo, o termo “Império do Meio” que os chineses usam para se referir a si mesmos pode ser um pouco explicado em sua relação conflituosa com alguns reinados do sudeste asiático.
Ainda que não possa ser comparado com o conceito ocidental de império, nem do passado, nem dos dias de hoje, a China não hesitou em atacar quando via seu comércio ameaçado por reinos em ascensão. A principal vítima geográfica foi o Vietnã, foram séculos de guerras entre ambos e controle direto chinês do território vietnamita, que só terminou no séc X.
Pequenos reinados e federações onde hoje são Camboja, Laos e Mianmar também passaram por processos semelhantes de interferência chinesa, principalmente em períodos de expansão do Império do Meio.
Diferenças com o ocidente
A Mandala é um modelo social muito distante da Teoria Burocrática Weberiana que é largamente difundida no ocidente. Para Weber, a ideia de burocracia está intrinsecamente ligada ao conceito de autoridade. Nela, o foco é em uma administração social técnica, mecanicista e que não leva em consideração comportamentos pessoais e subjetividades humanas.
O sistema de Mandala pode ser caracterizado como: sistema político definido por seu centro, e não por seus limites, podendo ser composto de vários outros sistemas políticos tributários sem passar por integração administrativa, ou seja, um modelo relacional.
A ênfase nas relações pessoais é uma das características que diferem o sistema de mandala, o governante tributário ficava subordinado ao governante suserano, e não ao Estado em abstrato.
E isso muda tudo, um governante forte atraia novos parceiros que poderiam resultar em mais laços tributários. Um governante mais fraco tinha mais dificuldade em atrair, e principalmente, manter suas relações.
Também pode ser chamada de relação “patrono-cliente”, onde o patrono (governante) possui poder e influência que são usadas para auxiliar seus clientes (pequenos reinos ou federações). Os clientes, em troca, fornecem serviços menores e lealdade ao rei, alimentando seu poder. Um sistema de certa forma similar ao Feudalismo europeu.
O soberano frequentemente presenteava seus tributários com produtos de alto valor. O tributário deveria fornecer homens e suprimentos quando necessário, na maioria das vezes em tempo de guerra para continuar tendo essa proteção do governante mais forte. Para o historiador tailandês Thongchai Winichakul “é uma proteção semelhante à da máfia”.
Outra diferença fundamental é que o sistema não era territorial, as guerras geralmente eram pela captura de espólio ou de prisioneiros para reassentamentos. O desejo era o controle sob os homens e não por pedaços de terra ou com o intuito de exportar sua organização social e política.
O suserano devia lealdade ao governante tributário ou, no máximo, à sua cidade, e não ao “Estado”. O tributário, por sua vez, tinha poder sobre seus “Estados” controlados ou diretamente sobre “seu” povo, onde quer que vivesse. Nenhum governante tinha autoridade sobre áreas despovoadas.
Outro fator interessante e que defere ao europeu, é que essa relação não implicava exclusividade, um vassalo poderia “homenagear” dois ou três suseranos mais fortes simultaneamente sem problema algum. E ao contrário do que pode parecer, esse movimento pode ser um sinal de força e sabedoria, e não de total submissão.
Com isso, ocasionalmente, um vassalo pode jogar um suserano contra o outro. Trazendo para um exemplo mais recente e prático: A Tailândia fez algo parecido em pleno colonialismo europeu, aproveitou-se de estar geograficamente no meio da região britânica (da Índia à Mianmar) e francesa (Vietnã Laos e Camboja) para oferecer acordos similares com as duas potências e ser o único país que se manteve autônomo no período.
Obviamente que os europeus já trabalhavam há tempos com o conceito de “Estado-tampão” entre duas grandes potências para evitar um conflito direto entre ambas, mas isso não diminui o feito tailandês, um acordo que pudesse ser visto como privilegiado por uma das partes europeias poderia colocar o país asiático de joelhos.
Um bom resumo do sistema político e social do sudeste da Ásia pode ser encontrado no livro “História da Ásia” de Emiliano Unzer, o autor diz que a região é uma mistura da influência religiosa do hinduísmo, budismo e islamismo misturada com cultos locais e visão social confucionista, que faz um forte apelo a família, a disciplina e as autoridades em geral.
Conclusão
Academicamente, a Mandala é dada como morta entre o final do século XIX e início do século XX quando a Tailândia adotou o modelo europeu com limite de controle através de fonteiras territoriais nacionais. Mas as raízes de séculos de história e cultura não morrem no imaginário coletivo. Talvez a Mandala seja a grande responsável pelo sucesso político e econômico do sudeste asiático.
Um pequeno espaço físico que abriga algumas das nações com maiores densidades demográficas do mundo com os mais diversos sistemas políticos e econômicos que o Homem já produziu. Do comunismo de inspiração soviética do Vietnã ao liberalismo comercial voraz de Cingapura, passando por um sultunato antigo do Brunei, os países foram capazes de se unir em busca em um bem comum.
E com isso, em 1967, nasceu a ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) com um forte ceticismo mundial justamente por abarcar tantos modelos distintos. As análises que indicavam o fim prematuro do órgão eram infinitas, muita gente chamava a região de “panela de pressão prestes a explodir” e até de “Segundo Oriente Médio” conforme os países conquistavam autonomia e ditavam seu próprio rumo.
O que a história mostrou foi justamente o contrário, o bloco conquistou feitos admiráveis e tem sido visto como alternativa de investimentos para diminuir a dependência mundial dos produtos chineses. Separadamente ou como bloco, o sudeste asiático coleciona acordos comerciais com o mundo nos últimos anos.
O sudeste asiático deverá ter 7 das 20 maiores economias mundiais até 2050, com destaque para a Indonésia, que será a terceira ou a quarta em três décadas. Um terço da produção mundial também pertencerá ao bloco.
Talvez tenha faltado aos analistas, cientistas políticos, formadores de opinião e formuladores de políticas do ocidente um pouco mais de estudo histórico regional e sobrado um pouco de soberba. É inato ao europeu e ao estadunidense refletir sobre o outro partindo do ponto de vista de si mesmos.
Assim como a China, que vem desenvolvendo correntes teóricas próprias para explicar seu desenvolvimento, quem sabe o sudeste asiático não retome o conceito de Mandala no futuro para mostrar ao mundo como conseguiu superar tantas barreiras e dificuldades.
Referências
CRUZ. J.M. Teoria Burocrática da Administração. Disponível em: < https://www.infoescola.com/administracao_/teoria-burocratica-da-administracao/ > Acesso em: 09/07/2021.
FREDERICK, W.H. History of Southeast Asia. Disponível em: < https://www.britannica.com/topic/history-of-Southeast-Asia-556509#ref509077 >. Acesso em: 10/07/2021
THONGCHAI, Winichakul. Siam Mapped. University of Hawaii Press, 1994.
UNZER, Emiliano. História da Ásia. Publicação Independente. 2019.
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