Vinte anos de Crise
Edward Hallet Carr (1892-1982), historiador londrino, jornalista, diplomata e teórico das relações internacionais, delineia, em Vinte anos de crise, sua concepção do pensamento realista e idealista com base no ideal de ciência perfeita, aquela que conjuga o processo e o desejo de forma equilibrada.
O “desejo” em questão, como se verá aqui, corresponde ao objetivo, à inspiração teórica dos autores, ao passo que o “processo” diz respeito à análise técnica, à adequação à realidade dos anseios utópicos.
Na verdade, se Carr condena a utopia desmesurada dos idealistas, principalmente no contexto do entreguerras (os vinte anos de crise aos quais o autor se refere no título da obra), também condena o imobilismo pessimista dos realistas, segundo o autor, O período entre guerras foi quando a utopia se mostrou ineficiente ao ponto de ser estraçalhada pela corrente teórica do realismo.
O ponto central de Carr é a defesa do imperativo de se promover a sutura entre teoria e prática, utopia e realidade, desejo e processo na teoria das relações internacionais.
O pano de fundo utópico liberal contra o qual Carr se insurge é aquele que pressupõe uma harmonia de interesses natural entre as nações. Trata-se de pressuposto que guarda suas raízes no racionalismo filosófico do século XVIII e XIX. Bentham (1748-1832), arauto do utilitarismo, partiu do postulado de que a característica fundamental da natureza humana era a busca do prazer e a rejeição da dor.
A partir daí, deduziu uma ética racional que definia o bem através da famosa fórmula “a maior felicidade para o maior número”, o que proporcionou uma confirmação plausível para a presunção “científica” de que o homem adaptar-se-ia, infalivelmente, à lei moral da natureza tão logo agisse racionalmente.
O utilitarismo é uma doutrina baseada no racionalismo ético socrático, o que alimentou o credo liberal de que a opinião pública, se guiada pela razão, julgará qualquer questão corretamente e em harmonia. No plano da teoria das relações internacionais, a utopia liberal pode ser ilustrada com The great illusion, de Sir Norman Angell, que tentou convencer o mundo de que a Guerra jamais trouxe lucro, tratando-se meramente de produto de uma “falha de entendimento”.
No plano econômico, o credo liberal da harmonia de interesses fez escola com o laissez-faire de Adam Smith, com o objetivo de remover o controle estatal da economia. Buscou-se demonstrar que se podia confiar no indivíduo, sem controle externo, para promover os interesses da comunidade, com a justificativa de que esses interesses eram iguais aos da pessoa particular.
O que seria verdade para os indivíduos, tentou-se transplantar para o internacional: assim como os indivíduos, visando a seu próprio bem, inconscientemente promovem o bem de toda a sociedade, as nações servem a humanidade ao servirem a si próprias (p. 63). A doutrina da harmonia de interesses não demora a ser invalidada já no final do século XIX. Começa a se colocar a transição entre a aparente harmonia e o visível choque de interesses entre as nações.
No norte da África e no Extremo Oriente, houve uma correria das potências europeias para assegurar os poucos locais interessantes que permaneciam vagos. A emigração de europeus para a América assumiu dimensões nunca vistas. Na Europa, o antissemitismo reapareceu, após um longo intervalo, na Rússia, Alemanha e França. Na Grã-Bretanha, a agitação contra a irrestrita imigração estrangeira começou na década de 1890 e a primeira lei controlando a imigração foi aprovada em 1905.
Revelava-se a inconsistência do belo lugar-comum da doutrina anglo-saxônica das relações internacionais do século dezenove de que ninguém se beneficia prejudicando o próximo. O argumento não convencia os alemães, que se beneficiaram bastante com as guerras de 1866 e 1870, com a aquisição da Alsácia-Lorena da França, e que atribuíam seus mais recentes sofrimentos não à guerra de 1914, mas ao fato de a terem perdido (p. 72). Da mesma forma, os italianos não culparam a guerra pelos seus prejuízos, mas sim a traição dos aliados, que os enganaram no acordo de paz.
Se o realismo surge como doutrina das relações internacionais somente no século XX, suas inspirações, contudo, guardam origem antiga. Apesar da máxima “a justiça é o direito do mais forte” ter sido familiar no mundo helênico, foi o renascentista Maquiavel o primeiro importante realista político (p.86).
Três são os princípios essenciais, implícitos na doutrina de Maquiavel, que são pedras angulares da filosofia realista:
O primeiro deles é o pressuposto de que a história nada mais é do que uma sequência de causa e efeito, cujo curso se pode analisar e entender através do esforço intelectual, porém não, como os utópicos acreditam, dirigida pela “imaginação”.
O segundo princípio essencial é o que postula que a teoria não cria a prática, mas a prática é quem cria a teoria.
O terceiro e último princípio essencial tem como base a política não em função da ética, mas sim a ética como função da política.
O moderno realismo difere daquele de suas origens. Tanto a utopia quanto o realismo aceitaram e incorporaram às suas filosofias a crença no progresso do século XVIII, com o paradoxal resultado de que o realismo tornou-se, aparentemente, mais “progressista” do que o ideário utópico (p. 87).
O realista demonstrou que as teorias intelectuais e os padrões éticos dos utópicos, longe de serem a expressão de princípios absolutos e apriorísticos, são historicamente condicionados, tanto frutos dos interesses e circunstâncias como armas forjadas para a defesa própria.
O pensamento realista moderno, além de relativizado, é também pragmático, na medida em que consegue adequar meios a fins. As teorias raciais, antigas e modernas, por exemplo, pertencem a essa categoria, pois o domínio de um povo ou classe sobre outro é sempre justificado pela crença na inferioridade mental e moral do dominado (p. 90).
A doutrina da harmonia de interesses, então, para o realista, é o pressuposto de uma classe próspera e privilegiada, cujos membros têm voz dominante na comunidade e são, assim, propensos a identificar os interesses dela com os seus próprios, em excelente ilustração da máxima de Maquiavel, segundo a qual a moral é produto do poder.
A crítica realista, apesar de consistente, guarda consigo certas limitações. O realismo, embora preponderante em termos lógicos, não nos dá as fontes de ação que são necessárias até mesmo para o prosseguimento do pensar (p. 105). De fato, a crença de que certos fatos sejam inalteráveis, ou certas tendências irresistíveis, normalmente reflete uma falta de desejo, ou de interesse, em mudá-los ou resistir a ele.
A filosofia de Carr está baseada em seu modelo de ciência perfeita, que promove a dialética entre desejo e processo. O objetivo, o desejo, precede o processo, a análise e a investigação metódica das ciências em geral. A utopia cumpre, então, o papel de fase preliminar, fundamental e complementar da análise científica, já que “o desejo é o pai do pensamento [e] a teleologia precede a análise” (p.11).
Utopia e realidade são ainda muitas vezes associadas às figuras do intelectual e do burocrata. Se o intelectual é aquele treinado para pensar em termos apriorístico-racionalistas, ou seja, pretendendo fazer uso exclusivo da razão sem nenhum respaldo empírico, o burocrata se restringe ao empiricamente comprovável.
O utópico, além do mais, é associado à imagem do radical de esquerda, e o realista, ao conservador de direita, pois, dada a visão pessimista e determinística da realidade do último, em modificações profundas do status quo.
Na mesma linha de raciocínio, utopia e realidade se associam à ética e à política. O utópico estabelece um padrão ético que proclama ser independente da política. O realista, por sua vez, não aceita logicamente nenhum valor padrão, exceto o dos fatos. Por fim, a antítese utopia e realidade também pode coincidir com a antítese teoria-prática, posto que utopia e realidade se interpenetram no fazer científico, assim como acontece entre teoria e prática.
Acredita-se que apesar de não ser uma obra exatamente teórica, porém, um relato do período e a explicação de fatos ocorridos, Edward Carr mostra grande competência ao analisar o pós I Guerra Mundial e visualizar a incapacidade do idealismo proposto, ainda mais, propondo a visão realista dos ocorridos, sendo esta obra um marco desta corrente teórica nas Relações Internacionais.
Carr ainda menciona que a ordem do pós II Guerra Mundial não seria mais a mesma até então, pois, os atores já tinham outras percepções de mundo. Sendo assim, a nova ordem internacional que Carr vislumbra não se dá a partir de uma coalizão das principais potências, como ocorrera até então, mas por uma força suficientemente forte para sua continua ascendência, sendo esta aceita pelos outros membros do sistema.
Uma única potência como reguladora do sistema, como potência hegemônica para manutenção da ordem e interesses. Carr propõe essa ordem, justamente, pela ineficácia das ordens anteriores e da nova conjuntura que ascende.
Em suma, o autor afirma que os fatos das ciências humanas estão diretamente ligados ao objetivo do estudo, demonstrando que ambos os conceitos são congruentes e exercem influência mútua, e objetivo do cientista político é a busca de um equilíbrio que forneça condições de estabelecer objetivos, mas com ampla noção dos fatos da realidade em que está inserido.