Reflexões da Quarentena 2 – Sartre e o desespero do confinamento

Existencialismo é um conjunto de doutrinas filosóficas que, apesar de sua fama pessimista, é apenas uma filosofia que coloca sobre o homem toda a responsabilidade por suas ações. A análise central é o homem em sua relação com o mundo, em oposição a filosofias tradicionais que idealizaram a condição humana.

Um dos maiores expoentes dessa corrente foi o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, segundo ele, “o homem está condenado a ser livre”. O autor explica dizendo:

 “…o homem está condenado a ser livre. Condenado, pois ele não se criou a si mesmo, e, por outro lado, contudo, é livre, já que, uma vez lançado no mundo, é o responsável por tudo aquilo que faz.” (Jean-Paul Sartre, em ‘O Existencialismo é um Humanismo’)

Inicialmente, parece contraditório pensar que uma pessoa esteja “condenada” a ser “livre”, pois o termo implica em algo negativo, que priva o ser humano ou o impede de algo. Aí que entra o grande diferencial existencialista: o homem está condenado a ser livre, pois a liberdade não é uma escolha, mas uma condição própria de sua existência.

Neste sentido, não há como aceitar ser ou não livre, pois o ser humano é liberdade, e por isso, está a todo momento fazendo escolhas, até quando não escolhe, a escolha está feita.

A liberdade na concepção existencialista não é a do senso comum, como uma ideia de não se importar com nada ou ninguém, pelo contrário, é a liberdade para a escolha, e mesmo que tenha apenas uma opção, essa total autonomia é justamente a possibilidade de rejeitá-la.

 “O homem, sem nenhum tipo de apoio nem auxílio, está condenado a inventar a cada instante o homem. (…) Nenhuma regra de uma moral genérica pode indicar o que devemos fazer; não existem sinais outorgados no mundo.”
(Jean-Paul Sartre, em ‘O Existencialismo é um Humanismo’)

A dificuldade em fazer escolhas surge porque optar implica renúncia, e qualquer escolha feita, obrigatoriamente, impossibilita todas as outras. O ser humano enquanto ser desejante, quer escolher, mas não quer renunciar, e isso gera angústia.

A angústia, portanto, vem da própria consciência de emancipação e da responsabilidade em usá-la de forma adequada. Um escravo sofre de muitas maneiras, mas não de angústia, a menos que ele pense em se rebelar e quebrar as correntes do seu destino. E quando ele cria uma opção, entra a liberdade de fazer ou não, e automaticamente, nasce a angústia.

O aumento de transtornos mentais entre jovens do mundo todo, segundo existencialistas, se dá pela angústia de nunca ter havido tantas opções. Antigamente eles eram obrigados a seguir a carreira que o pai escolhe, os casamentos eram arranjados, as amizades controladas.

Diante deste cenário de independência, escolhas e angústia, no atual momento de quarenta por causa da pandemia, a frase de Sartre nunca fez tanto sentido. O sentimento de aprisionamento não afeta a sociedade de maneira proporcional, o desespero é proporcional ao bem-estar financeiro de cada uma dessas pessoas.

Conforme a mídia mostrou em diversos casos, os mais ricos desobedecem com frequência o confinamento, mesmo com a total consciência de seus atos e não precisando fazê-lo para se locomover ao trabalho. E o fazem não por uma rebeldia ao sistema ou como uma forma de questionar se essas regras são as mais adequadas, mas porque eles têm mais autonomia, e como dito anteriormente, uma maior angústia de possíveis escolhas e também a da não escolha.

Como o caso do empresário, que após ser diagnosticado com Covid19, foi para uma casa de praia na Bahia, ou um casal de ciclistas do interior que voltou com o vírus da Europa e fez vídeo satirizando a situação pedalando por uma estrada.

Ao contrário da grande maioria das pessoas que pouco teve sua rotina afetada, que normalmente raciona saída e opções de lazer, quem tem dinheiro está vivendo em pura agonia, seja por refletir sobre a consequência de seus atos de sair de casa, seja por estar habituado a ir e vir por não sofrer as restrições econômicas que quase todos os outros sentem.

Quem conhece ou convive com alguma pessoa com poder aquisitivo nota com clareza o tamanho do desalento diário desse grupo que possui meios para ir aonde quiser em períodos normais, mas que no momento pesa a consequência dos seus atos e sente o peso do não escolher.

E aqui não é uma visão marxista de lutas de classes, é apenas uma reflexão sobre atitudes de diferentes classes sociais, nada garante que o pobre de hoje que virasse o rico de amanhã não faria exatamente a mesma coisa. É apenas uma reflexão sobre a agonia de quem teoricamente não teria motivos para furar a quarentena e se colocar em risco.

Liberdade é inseparável das condições concretas do seu exercício, o homem nunca esteve tão condenado a ser livre.

 

SARTRE, Jean-Paul.1987. O Existencialismo é um Humanismo. 3ºEdição. Tradução de Rita Correia Guedes. São Paulo: Abril Cultural