Relações Asean x China no mundo pós-covid-19
Os países do sudeste da Ásia (Asean) têm a rara chance de aproveitar o cenário geopolítico e a visão de interdependência da China para moldar ativamente um novo tipo de relacionamento.
No mundo das grandes narrativas geopolíticas, o bloco costuma aparecer como um ator relativamente menor, passivo. No máximo, ele é visto como um fator de equilíbrio entre as grandes superpotências em guerra comercial.
No início de março a Asean ultrapassou a União Europeia como maior parceira comercial da China. Em 2019, as 10 economias do grupo estiveram entre as principais beneficiárias da tensão EUA x China, com muitas empresas estrangeiras sediadas na China procurando outros países para se mudar, em uma tentativa de diminuir a dependência mundial da cadeia de suprimentos de Pequim.
Com a crescente reação internacional negativa contra o Império do Meio, a China passa a precisar dos países do sudeste da Ásia não apenas como parceiro econômico, mas também como o grande laboratório prático de criação do seu multilateralismo, a visão de mundo estatal denominada “trabalhar juntos para construir uma comunidade com futuro compartilhado”.
Trabalhar juntos para construir uma comunidade com futuro compartilhado
A essência da ideia, segundo o relatório do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês é: todos trabalharem num esforço conjunto para formar uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade e construir um mundo de paz duradoura, segurança universal, prosperidade comum, abertura e inclusão, e um mundo limpo e belo.
Quer dizer, para formar uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade, é preciso trabalhar em cinco aspectos: política, segurança, economia, cultura e ecologia. No discurso proferido no Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou no dia 23 de março de 2013, Xi Jinping apresentou pela primeira vez ao mundo o conceito.
Relações Asean x China
O sudeste da Ásia certamente não estava nas prioridades do governo chinês no início de 2020. Pequim estava voltada para a Europa, tinha conseguido incluir a Itália no projeto da Nova Rota da Seda e estava em conversas adiantadas com a Alemanha e outros países da centrais e orientais do velho continente.
Em junho, tudo havia mudado, a desconfiança e a insatisfação no tratamento inicial da China frente ao coronavírus fizeram com que muitos países repensassem sua parceria com o Império do Meio, principalmente os ocidentais.
Em poucos meses a reviravolta foi imensa, o entendimento quase unânime de um mundo interconectado se transformou em ceticismo. Além dos devastadores efeitos sociais, econômicos e políticos, a pandemia reformou narrativas e fortaleceu visões contrárias à conectividade e à globalização.
Em contraste com os EUA e a União Europeia, os países da ASEAN foram rápidos em colaborar com a China desde o início da crise, organizaram rapidamente uma cúpula dos Ministros das Relações Exteriores entre eles ainda em fevereiro.
Nos primeiros dias da infecção, enquanto o sentimento anti-chinês se formava em todo o mundo, os países do Sudeste Asiático responderam às notícias de Wuhan com compaixão, solidariedade e apoio.
Foi noticiado que Malásia, Filipinas, Vietnã, Indonésia, Tailândia e Cingapura doaram vários tipos de equipamentos médicos, embora não tenha sido confirmado e um artista tailandês compôs uma música em solidariedade ao país. Meses depois como retribuição, a China enviou ajuda médica e especialistas para a toda a região.
Esses múltiplos níveis de resposta coordenada China-ASEAN mostraram a necessidade e os benefícios da interdependência e da cooperação. Além de representar um forte contraste frente ao resto do mundo. Isso mostra não somente a proximidade geográfica e estratégica que a China deve manter com a região, mas também cultural e diplomática para ver nela um constante aliado incondicional.
Tensões Asean x China
Os principais pontos de controvérsia do bloco com a China são: as brigas marítimas e as condições dos projetos da Nova Rota da Seda (que merecem um texto somente para explicar a complexidade de cada uma delas).
Disputas Marítimas
A China reivindica direitos especiais econômicos em uma área chamada Zona Econômica Exclusiva que entra em choque com as próprias Zonas de: Filipinas, Vietnã, Indonésia, Brunei e Malásia.
Em 2016, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar deu um parecer favorável às Filipinas, e como resposta, a China ignorou a entidade internacional. Ao todo são mais de 20 ilhas e 50 entidades geográficas em disputa.
Em contrapartida, Pequim tenta acordos bilaterais com cada um deles para resolver a questão, pois separadamente, o poder de barganha dos Estados menores diminui consideravelmente.
Nova Rota da Seda
Segundo dados de 2018, que infelizmente não estão atualizados ou são transparentes, o bloco corresponde a mais de US $ 740 bilhões em investimentos do projeto. No momento, apenas 13 deles foram identificados como operacionais, uma fração muito pequena do total da região.
Um grande ponto de controvérsia entre eles, é o fato dos países do sudeste asiático, assim como a China, possuírem uma enorme massa de mão de obra ociosa, e uma das reivindicações de Pequim para implementar o projeto de infraestrutura nos países é o uso quase que exclusivo de trabalhadores chineses.
Conclusão
Os países do Sudeste Asiático devem aproveitar esse momento de fragilidade na imagem internacional chinesa para pleitear renegociação dos termos de contratação de mão de obra local nos projetos da Rota da Seda e unificar o bloco para exigir melhores condições sobre os direitos nos mares sob a égide do multilateralismo, sair do campo passivo e projetar-se ativamente.
Certamente não é uma tarefa fácil e requer um alto grau de sinergia tentar envolver a poderosa China em algum tratado. Como tudo que precisa de mais de um lado, a elogiada visão teórica de “construir uma comunidade com um futuro compartilhado”, depende da disposição da contraparte para existir e sair do papel. O cenário ideal para pôr à prova a teoria multilateral que Pequim se esforça em divulgar é agora.
Referências
http://portuguese.china.org.cn/china_key_words/2019-04/18/content_74695813.htm
https://www.globaltimes.cn/content/1181864.shtml
https://thediplomat.com/2020/06/asean-must-make-the-best-of-its-new-centrality-in-chinas-diplomacy/