Afeganistão – Conceitos teóricos e práticos sobre perguntas do post anterior

Devido a repercussão do episódio anterior, que está dando o que falar até hoje, resolvi fazer mais um cobrindo alguns pontos que me perguntaram durante essa semana e outros não tocados anteriormente e que são interessantes para quem vai acompanhar o desenrolar daqui pra frente com um pouquinho de ceticismo que seja.

Então vou fazer um episódio hoje sob duas premissas essenciais:

1 – Acredito que trazer alguns conceitos teóricos seja importante também, um pouco entediante, mas de extrema necessidade para criar uma boa capacidade analítica, principalmente para quem não é da área de Relações Internacionais.

2 – Tentar enfatizar um pouco mais que a região é complexa, nada é monolítico por ali.

 

Conceitos-chave

Claro que muitos outros conceitos viraram política externa ou simplesmente podem explicar até melhor questões mais dinâmicas do que puramente o “Heartland e o Rimland”, mas a ideia aqui é dar exemplos de como ideias saem do papel e são coladas em prática e tentar explicar os motivos das ações de alguns países do ocidente.

Heartland

Primeiramente é preciso ter em mente que como quase tudo das ciências em geral, toda prática nasce de alguma teoria, trazendo para o campo das Relações Internacionais, toda política externa toma forma na elaboração de algum texto ou tese universitária de algum especialista. E claro que isso não é de hoje, duas das mais famosas ideias geopolíticas da história recente e que diretamente ou indiretamente são utilizadas até os dias de hoje são os conceitos de “Heartland e Rimland”.

Halford Mackinder, em 1919, publicou o “realidades democráticas”, nesse escrito ele explicita o conceito de “heartland”. Para ele, o heartland se localizaria no centro da eurásia, englobando as áreas agrícolas da parte europeia da Rússia, se estendia por vastos territórios até a Ásia Central e chegava até os bosques e as planícies da Sibéria, um território rico em recursos inexplorados como o carbono, a madeira e outros minerais.

Como um inglês que foi, ele criou a teoria pensando na fraqueza britânica, que era uma potência marítima e não terrestre, diante de um império russo que era o inverso. O temor principal era o surgimento de um grupo que conseguisse controlar e apaziguar toda essa região, o que certamente tiraria o reino unido de maior potência global de então.

Pós primeira guerra o temor do autor foi uma união parecida entre as potencias russas e alemãs, separar Europa e Rússia passou a ser uma espécie de repaginada da tese. Mackinder afirma que “quem domina o leste da Europa, domina Heartland. Quem domina Heartland, reina na ‘ilha do mundo’. Quem domina a ‘ilha do mundo’ governa o mundo inteiro”. Ele denomina ilha mundo por ser o maior pedaço de terra continuo do planeta.

Hoje, mais do que nunca esse conceito está vivo, a dobradinha Trump/Biden ameaçou a Alemanha com sanções caso comprasse gás natural russo. Acontece que para Berlim é muito mais barato do que importar de outros países, como dos EUA por exemplo. Além de parte dos políticos não se dobrarem a chantagem estadunidense, parte da elite industrial alemã também não cedeu, pois precisam desse adicional de energia para financiar seu crescimento.

Rimland

Chegamos ao segundo conceito-chave notório na modulação da política externa das principais potencias nos dias de hoje, o “Rimland”. Nicholas j. Spykman, um geógrafo estadunidense desenvolveu em 1942, uma teoria em cima da de Mackinder, a respeito da influência da geografia nas disputas globais, especialmente na eurásia ao longo da história.

O autor compartilha com Mackinder a ideia da unicidade da superfície líquida do planeta e da divisão da superfície terrestre em grandes blocos insulares formados por uma série de ilhas-continente. Se para Mackinder o importante era a região citada anteriormente, para Spykman era o seu entorno, em outras palavras, para inglês, quem controla o Heartland controla o mundo, enquanto que para norte-americano, quem controla o poder mundial é quem é capaz de cercá-lo.

E por isso, Spykman sempre defendeu uma política externa americana intervencionista. Partindo do pressuposto de que as condições geográficas de um país determinam sua estratégia de segurança, era indispensável à segurança dos estados unidos ultrapassar os limites de suas fronteiras.

Segundo ele, a primeira linha de defesa deveria estar situada na orla eurasiática, ou seja, em países fronteiriços ao que antes era União soviética (os “istão”, a Europa continental e a China), por isso tantas campanhas intervencionistas desde o fim da Segunda Guerra Mundial entre outros motivos, claro.

Para reforçar a tese das políticas externas nascerem da cabeça dessas pessoas lembro em 1942 em seu livro “américa’s strategy in world politics”, Spykman disse que caso argentina, brasil e chile formassem uma aliança para contrabalancear o poder e a influência dos EUA no subcontinente, isso deveria ser respondido com guerra.

 

Nova Rota da Seda

O ponto de vista teórico ocidental foi visto, agora é preciso ver pragmaticamente o chinês sem o adjetivismo que tomou conta do brasileiro maniqueísta, que inclusive tem postado que o Biden precisa ser impeachtmado pelas cenas que vimos no Afeganistão. (sim, teve isso)

*Em cinza o corredor econômico China – Paquistão. A importância geográfica do país

Cerca de 2/3 de todo comércio mundial passa pelo estreito de Malaca, que é a principal passagem marítima entre os oceanos índico e pacífico e encontra-se entre a península da Malásia e a ilha de Sumatra. Ou seja, em um estreito passa cerca de 66% do comércio mundial do modal marítimo que presenta mais de 90% de todo comercio global.

O mundo tem alguns gargalos que podem travar todo o comercio, como aquele acidente no canal de Suez que aconteceu há alguns meses, o agravante do estreito de Malaca é que por ele passa quase tudo o que a China importa e exporta. Quer outro? A região está cerca por bases militares dos EUA.

Estimativas colocam que caso ele seja fechado e Pequim tenha que procurar outras rotas, isso custaria algo entre US$ 84 a 220 bilhões por ano. Crises energéticas e alimentares aconteceriam antes da econômica, podendo levar a social. Enxergando sua fragilidade geográfica a china colocou em andamento o plano mais audacioso da história humana sob vários aspectos: a nova rota da seda.

O que convencionou chamar em português de Nova Rota da Seda é um grande projeto de investimento global em infraestrutura criado em 2013 visando mais de 70 países. São portos, aeroportos, estradas, túneis, barragens, ferrovias e até a abertura de um canal artificial nos moldes do panamenho na Tailândia.

Os críticos alegam que se trata de um novo tipo de imperialismo que visa endividar países pobres para que fiquem amarrados aos chineses por décadas, outros alegam que é uma forma de trocar dinheiro por poder por parte do partido comunista chinês, como se mecanismos como o FMI, o banco mundial fosse muito diferente tampouco os empréstimos e ajudas de países ricos ocidentais.

Tirando os adjetivos do radar, é preciso abrir o mapa mundi e ver quais e onde estão esses investimentos, o que o império do meio está fazendo antes de tudo é criar diversas rotas de comercio fazendo com que seja impossível para qualquer inimigo travar o escoamento e a chegada de produtos e serviços que o país precise. Obviamente que o lucro com juros desses aportes faz parte do jogo, embora também tenham especificidades que o distingam das instituições como o FMI.

Orientalismo

Outro conceito teórico indispensável para pensar a região é conhecer o termo “orientalismo”. Edward Said criou o termo para alegar que o termo “oriente” é uma invenção do “ocidente” para marcar uma divisão de poder e de dominação, uma espécie de imagem refletida no espelho para legitimar a identidade eurocentrista e discriminatória do ocidente.

É importante sempre retomar sua ideia para lembrar o quão confuso e multifacetado é o tal oriente, colocar toda a Ásia em uma caixinha qualquer e inviável sob qualquer aspecto de análise. Como referencial, Said emprega a noção de discurso conforme utilizada por Foucault. Ou seja, considera a expressão discursiva em face ao poder.

A distinção estrutural entre “nosso” e “deles” para reduzir os diversos países e povos de regiões distintas no oriente, desse modo, o oriente é tido como místico, sexualizado, violento, ingênuo, bruto, incivilizado, dentre outros atributos imaginados.

Talvez o tema mais controverso e de difícil compreensão para o ocidente, e principalmente para a esquerda e o progressismo ocidentais seja as roupas femininas, atrelá-las automaticamente a abusos é um erro sem tamanho. A concepção do feminino e da instrumentalização do corpo é totalmente diferente nas “duas culturas” (recorrendo ao orientalismo para simplificar).

O grande exemplo prático é o governo iraniano que caiu para a revolução islâmica. O então xá Reza Pahlavi, visando modernizar o país, proibiu mulher de usar o véu islâmico conhecido como Hijab, proibiu roupas masculinas que remetiam ao que ele chamou de “atraso” e até mesmo que homens deixassem barba, sob pena de prisão. Liberou bebidas alcoólicas e tomou uma série de medidas que desagradou a parte conservadora da sociedade iraniana.

Não dá para medir quantas mulheres gostaram e quantas odiaram a obrigatoriedade de usar vestimentas ocidentais implantadas pelo governo, e pouco importa também, a violência se dá na proibição em si não na taxa de adesão da medida. Outro exemplo de como isso importa é reparar que em muitos países islâmicos é opcional e mesmo assim muitas mulheres usam. O feminismo ocidental precisa estar atento as peculiaridades e não associar vestimenta e cultura à opressão.

 

Afeganistão

 

Economia

Inicialmente, o Talibã buscou acabar com plantações de papoula, insumo necessário para a produção de ópio. Entre 1997-1999 o mulá Omar, então líder do talibã propôs aos EUA e ONU acabar com a produção de ópio no país em troca de reconhecimento internacional, o que nunca veio.

Então, o talibã viu a necessidade de formalizar essa economia da droga para extrair receita e passou a ganhar bilhões com ela. Na primeira coletiva de imprensa nessa semana, o grupo afirmou que reduzirá o plantio a 0 novamente por não se enquadrar com as práticas e costumes do islã.

E por que dessa vez pode ser verdade? Simples, porque segundo estimativas de empresas estadunidenses, o solo afegão pode conter mais de 3 trilhões de dólares em minérios. Recursos como cobre, ouro, petróleo, gás natural, urânio, bauxita, carvão, minério de ferro, terras raras, lítio, cromo, chumbo, zinco, pedras preciosas, talco, enxofre, travertino, gesso e mármore.

Conseguindo estabilizar o país e atrair empresas com a tecnologia necessária para a exploração, o Afeganistão pode finalmente sair da lista dos países mais pobres do mundo.

Atualmente o país produz cerca de 90% da heroína global. Quando os EUA invadiram em 2001, esse número era muito mais próximo de zero. A proibição do cultivo foi no início do mesmo ano, e na virada para 2002 o negócio estava quase extinto. Desde a invasão dos EUA em outubro de 2001 a produção de ópio aumentou quase todos os anos.

Vínculos da cia com tráfico de drogas é largamente conhecido, até em filmes e séries mesmo de Hollywood, esse é só mais um caso em que todas as evidências demonstram que há essa ligação, mas que só será público daqui 20 ou 30 anos quando todos os envolvidos já estiverem mortos.

Para além das especulações é necessário perguntar a Washington dados concretos de duas décadas de ocupação. Gastos, investimentos, dados sociais, econômicos, políticos, enfim, um mínimo de prestação de contas deveria haver. Como um país que teve tanto dinheiro investido nesse período nunca rompeu o valor de 20 bilhões de dólares de PIB.

 

Aliança do norte

Agora sim falando do Afeganistão um pouco, muitos atores estão envolvidos no país e no seu entorno, as informações que chegam ainda são cheias de ruídos e desencontros, algumas confirmam que a resistência que se formou no norte declarou guerra ao talibã, a “aliança do norte” e outros dizem que um acordo está sendo criado dando ao país uma espécie de federação.

A aliança do norte fica numa região de vales montanhosos com pouca passagem de entrada e saída, o que a torna quase que impenetrável, portanto, um inimigo de tirar o sono. O líder do grupo se chama Ahmad Massoud, filho de Ahmad Shah Massoud (o leão de panjshir)

Seu pai, Ahmad Shah Massoud, criou o grupo em 1966 para lutar contra o talibã com um breve acordo de paz para focarem nos soviéticos, através de uma grande unificação de tribos e alianças ele foi o responsável pelo maior grupo de resistência, com o fim do talibã em 2011, o grupo foi dissolvido e muitos integraram o governo afegão.

Em 9 de setembro de 2001 Massoud foi assassinado após um ataque de dois homens-bomba da al-Qaeda, os homens fingiram ser jornalistas e detonaram uma bomba escondida dentro de uma câmera usada para filmagens. No ano seguinte foi nomeado “herói nacional” por ordem do presidente afegão Hamid Karzai e hoje seu filho comanda a organização.

Pra finalizar, o ponto central continua sendo o mesmo do último episódio: é muito cedo pra fazer prognostico e o talibã vai enfrentar sim muita resistência. É preciso tomar cuidado para não vincular resistência automaticamente a pessoas “do bem” pois esse tipo de erro ajudou a criar grupos como o próprio talibã. Esqueçam os adjetivos!

Isis Khorasan

Para fechar a complexidade da região, um ator pouco falado na mídia: o Isis Khorasan. É o estado islâmico do Afeganistão e Paquistão que fica na região de Khorasan. Foi criado em 2015 e é mais uma das tantas células do Isis que ainda existem espalhadas por diversas regiões. Biden recentemente deu uma declaração alegando temer ataques terroristas no aeroporto de Cabul, ele estava se referindo a esse grupo específico.

O curioso é que um de seus fundadores é o Abdul Rauf Aliza, o homem que foi o responsável pela morte de Ahmad Shah Massoud criador da aliança do norte. A Al-Qeda alegou que Massoud por sua aproximação com Aliza, ou seja, al-Qeda não gosta do homem que foi do talibã e que veio a ser do Isis alguns anos depois, que rivaliza com a aliança do norte, aliança essa que estava se aliando ao homem que se tornou líder de uma facção do Isis posteriormente.

Por isso o reforço, é preciso tirar as lentes inocentes do ocidente de atrelar religião ao extremismo e de pensar nos acontecimentos separando atores em dois lados. Parem! Nem a Marvel ou a DC fazem isso mais.

 

EUA

Em uma entrevista em 1998, o ex-conselheiro de segurança nacional do pres. Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, admitiu que o governo dos EUA apoiou secretamente militantes extremistas para encorajar os soviéticos a invadir, levando a décadas de guerra civil e destruição.

“De acordo com a versão oficial da história, a ajuda da cia aos Mujahideen começou em 1980, ou seja, depois que o exército soviético invadiu o Afeganistão em 24 de dezembro de 1979. Mas a realidade, vigiada de perto até agora, é completamente diferente: foi em 3 de julho de 1979 que o presidente Carter assinou a primeira diretriz de ajuda secreta aos oponentes do regime pró-soviético em Cabul. E naquele mesmo dia, escrevi uma nota ao presidente na qual expliquei a ele que, em minha opinião, essa ajuda iria induzir uma intervenção militar soviética. “

Entrevistador: você se arrepende?

“arrepender de quê? Essa operação secreta foi uma excelente ideia. Teve o efeito de atrair os russos para a armadilha afegã e você quer que eu me arrependa? No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira, escrevi ao presidente Carter, essencialmente: ‘agora temos a oportunidade de dar à URSS sua guerra do Vietnã. De fato, por quase 10 anos, moscou teve que travar uma guerra que foi insustentável para o regime, um conflito que comprou sobre a desmoralização e, finalmente, a dissolução do império soviético.

Entrevistador: e também não se arrepende de ter apoiado o fundamentalismo islâmico, que deu armas e conselhos a futuros terroristas?

Brzezinski: “o que é mais importante na história mundial? O talibã ou o colapso do império soviético? Alguns muçulmanos agitados ou a libertação da Europa central e o fim da guerra fria?”

Em 21 de setembro, mulá Omar “se os americanos fornecerem provas, vamos cooperar com eles… Na américa, se eu acho que você é um terrorista, é suficientemente fundamentado que você deveria ser punido sem provas?”, ele questionou. “este é um princípio internacional. Se você usa o princípio, por que não aplica-lo para o Afeganistão?”

E lembrar disso não coloca a autoria do atentado em xeque, apenas relembra algo que sempre é colocado por aqui: a hipocrisia do ocidente gera somente mais instabilidades regionais e pessoas dispostas a matar e morrer em diversas partes do mundo.

Brzezinski foi um cientista político e conselheiro do presidente Carter entre 77 e 81, o que reforça a tese inicial do texto: toda política externa nasce da cabeça de um ou mais especialistas, que por sua vez estão pensando no melhor para seu próprio país.

 

Dia a dia muito corrido? Ouça todos esses posts enquanto faz suas tarefas:

Quer ainda mais informação com direito a enquete diária sobre o sudeste asiático? Siga o Insta:

Interesse em conversar sobre Relações Internacionais e política local? Bora twitar: