Europa e a hora de posicionar-se

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A Europa e a hora de posicionar-se

 

A Europa está passando por um momento crucial em sua história, o ponto de não retorno para o continente decidir se quer continuar a exercer poder e influência ao redor do globo está chegando. Os grandes debates internos do bloco, principalmente em períodos eleitorais são: soberania energética, militar e econômica.

 

O assunto é doloroso porque envolve uma gama de temas caros aos europeus como Direitos Humanos, e intangíveis como uma população acostumada a estar na dianteira dos assuntos globais não ser mais tão relevante para as grandes decisões. O eixo central das ideias aqui expostas são teses e conceitos do professor em economia política José Luís Fiori

 

Geopolítica

 

“O poder político é fluxo, mais do que estoque. Para existir precisa ser exercido; precisa se reproduzir e ser acumulado permanentemente. E o ato de conquista é a força originária que instaura e acumula poder”. (José Luis Fiori)

 

Pivot para a Ásia

 

O grande marco geopolítico ocidental do Séc XXI é o “Pivot para a Ásia”.  O centro gravitacional dos embates entre as grandes potências sai do coração da Eurásia e lentamente se encaminha para a chamada “Região do Indo-Pacífico”.

 

Com isso, Washington afunda de vez o “Grande Jogo”, que foi o confronto, controles e contenções marítimas e terrestres entre Reino Unido e Império Russo que existia desde o séc XIX e inicia oficialmente uma fase que exige novas técnicas e teorias que se adequem ao novo modelo.

 

Para alguns, o ocidente deve “capturar” os vizinhos dos chineses através de acordos econômicos e parcerias estratégicas visando ser um contraponto ao endividamento dessas pequenas nações com o Império do Meio.

 

Para outros, o movimento correto é agir do jeito que se acostumou a fazer desde as Grandes Navegações: usar a força, invadir, chantagear, ameaçar e fazer um cordão de isolamento por água e por terra.

Acontece que, de um jeito ou de outro, pela primeira vez em pelo menos cinco séculos os europeus ou não são os que lideram o projeto nem os parceiros-chave para o movimento. E agora?

 

QUAD

 

O Diálogo Quadrilateral de Segurança (Quad) ainda é um fórum informal com algumas cúpulas ainda meio indefinidas que reúnem EUA, Índia, Austrália, Japão que já têm feito acenos a alguns países geograficamente interessantes, como o Vietnã.

 

Iniciado em 2007, a pedido do primeiro-ministro japonês Shinzo Abe, o objetivo oficial do grupo era manter “a liberdade e a prosperidade” na região, mas estava claro que a preocupação era o avanço da China principalmente nos mares das contestadas águas do “Mar do Sul da China”.

Depois da retirada dos EUA da Parceria Transpacífica por parte do governo Trump o bloco foi retomado. Já em seu primeiro diálogo houve exercícios militares conjuntos entre as nações-membros. No momento, os quatro países têm tentado prestar ajudar no combate à pandemia para as nações do sudeste asiático principalmente.

 

Está claro qual é o novo eixo de parceiros estratégicos de primeira ordem para a política externa estadunidense: o arco entre Índia, Austrália e Japão. Países com grande peso econômico, populacional e tecnológico para tentar fazer algum tipo de frente a Pequim.

 

Aukus

 

A citação sobre a criação do QUAD durante o governo Trump não foi por acaso, a ideia é mostrar tanto como em matéria de Relações Internacionais pouco muda em relação a qual partido está no poder, como o rebaixamento geopolítico do continente europeu. E a grande prova é o segundo órgão recente criado pelos EUA, o AUKUS.

 

É o acordo militar entre EUA, Reino Unido e Austrália que permitirá a Austrália construir submarinos de propulsão nuclear pela primeira vez a partir de tecnologia americana e inglesa, é a maior parceria no setor de Defesa entre eles desde a Segunda Guerra Mundial.

 

A Austrália já possuía um contrato bilionário de construção de submarinos com a França, que nem sequer previamente avisada da mudança dos planos foi. O alto escalão do governo francês falou abertamente que isso foi uma “facada nas costas” por parte dos EUA.

 

O recado foi dado, o continente europeu que há menos de um ano celebrou a mudança de poder em Washington percebeu que o “America is back” de Biden é um “America First” com diplomacia e palavras bonitas.

 

 

UNIAO EUROPEIA

 

Como explicado pelo professor Fiori, o poder é fluído, e somente o possui quem o exerce constantemente, quem tem capacidade de expandir e expor de forma líquida é quem detém o poder. O que foi visto aqui é que os EUA continuam exercendo-o ao reformular sua estratégia global e que o continente europeu não tem mais a mesma importância.

Segundo Fiori “O sistema mundial é um universo em expansão onde todos os Estados que lutam pelo poder global estão sempre criando, ao mesmo tempo, ordem e desordem, expansão e crise, paz e guerra.” E Está claro que a Europa não tem mais essa capacidade.

Para voltar a ser peça-chave da geopolítica global, o velho continente precisa primeiramente resolver os conflitos internos e criar coesão para somente depois remodelar sua política externa. Afinal, poder não é como uma joia rara em exposição em um museu, poder é ação!

 

Problemas intrabloco

 

Historicamente, coalizões de equilíbrio na Europa se formaram para impedir que uma única potência dominasse as outras e se estabelecesse como hegemônica continental.

Liderança

O grande entrave do bloco é a rivalidade interna entre os países que são históricas, religiosas, culturais, políticas, e claro, econômicas. Com a saída do Reino Unido, basicamente a Alemanha finge não ter o controle do bloco enquanto a França sustenta que está em posição de igualdade a Berlim.

Diversas pesquisas mostram que a maioria dos europeus não vê um alemão chefiando a Comissão Europeia como uma coisa ruim, mesmo em questões centrais como finanças, política, democracia e Estado de direito.

Por outro lado, o nacionalismo é uma ideologia muito arraigada nessa sociedade que boa parte dos países já foi um grande império, e isso causa em uma outra parte da população um perigoso sentimento saudosista de um passado que eles desejam que retorne.

Em números totais, talvez os pró-Alemanha como líder oficial sejam maioria, mas a história europeia também mostra que o nacionalismo chauvinista é capaz de grandes estragos, principalmente em momentos de crises.

 

Democracia

 

Depois de 17 anos na União Europeia, Hungria e Polonia passaram a ser um problema, populistas de direita em ambos os países vêm minando a democracia, os direitos de minorias, a liberdade de imprensa, aparelhando seus judiciários e até fazendo ameaças de sair do bloco para evitar punições.

Em dezembro do ano passado, os legisladores da UE aprovaram um regulamento que vincula o acesso a alguns fundos do bloco ao respeito dos países que fazem parte do tratado ao Estado de Direito, um claro recado para Budapeste e Varsóvia.

Curiosamente, os dois são os grandes deficitários do bloco em relação a quantia de verba que repassam para o mecanismo e a quantidade de verba que recebem dos mesmos, justamente por serem dois dos países mais pobres da UE. A situação atual é de impasse sobre punições.

 

OTAN

 

Um outro legado negativo que a Guerra Fria deixa para os europeus é uma OTAN com tantos membros e batendo às portas da Rússia. Um movimento respaldado em um pesado lobby de Washington para frear a Moscou Soviética e que nem sempre foi aprovado por vários dos Estados europeus.

Algumas adesões, tanto da OTAN como da UE foram polêmicas por serem vistas como claras provocações aos russos, e uma hora essa conta vai chegar. Hoje o órgão está em plena crise com Macron alegando que a OTAN estava sofrente de “morte cerebral’ conforme atritos com Trump seguiam.

Com o foco indo para o sul da Ásia, as questões financeiras e militares do norte da Europa com a Otan entram nessa fase meio amorfa. Washington quer que a UE gaste mais ao mesmo tempo em que não deseja que o continente se emancipe militarmente, mantendo inclusive, dezenas de bases na Alemanha.

 

Identidade

 

Internamente o bloco precisa deixar o comando tácito de um ou dois países e criar uma espécie de hierarquia de comando explícita. Esboçar um plano comum de metas de curto, médio e longo prazo, rever posicionamentos e alianças históricas e delimitar se permite apenas democracias ou não entre seus membros permitindo a saída definitiva de quem assim o desejar.

A liderança aberta criará ruídos internos entre os povos, os planos comuns para voltar a ser uma grande potência abrirá uma crise sem precedentes com os EUA e o limite democrático certamente fará com que o bloco perca alguns membros.

Infelizmente, não há uma saída não dolorosa e repleta de obstáculos caso a Europa queira se manter importante nas grandes questões, caso contrário será uma região rica, com boa qualidade de vida, mas isolada dos centros de poder, uma espécie de Catar ou Emirados Árabes do novo mundo.

 

Desafios Extrabloco

 

Ao contrário da União Soviética, a Rússia não tem planos expansionistas, os acordos comerciais entre as partes têm aumentado e a China está longe demais para ser uma ameaça de qualquer tipo para o continente, como ser autônomo e se equilibrar?

 

Rússia

 

Ao mesmo tempo em que mantém uma posição austera e de desconfiança com Putin, a Europa precisa da energia russa, essa posição ambígua também pode ficar em xeque uma vez que Moscou tem encontrado na Ásia novos mercados com boas taxas de crescimento sedentos por gás e petróleo.

Mesmo sancionando a Rússia pela questão da Crimeia, a Alemanha não tocou no projeto do Nord Stream 2, oleoduto russo que atravessa o Mar Báltico e é a grande alternativa para o crescimento da economia alemã e a redução do preço do gás em toda o continente que Europa que está em alta.

A aproximação entre Alemanha e Rússia é o grande temor dos EUA, que faz lobby para melar a relação. O que desagrada parte da elite industrial e é aprovada por parte da elite financeira, não somente alemã, mas de toda a Europa.

Ideologia x pragmatismo, direitos x Economia, rivalidade histórica x nova parceria estratégica. Tudo isso está em jogo e remete a toda estrutura, material e intangível do que compõe ser um cidadão europeu.

 

China

 

Pequim não representa uma ameaça à integridade territorial, não vai patrocinar ataques terroristas ou grupos doutrinários comunistas, a marinha chinesa não navegará meio mundo para impor algum tipo de bloqueio, muito menos enviará milhões de refugiados para o continente.

Não há porque a UE ter uma atitude de atrito com Pequim, e caso o faça também tem muito a perder, algo parecido com que acontece com a Rússia. Desaceleração na China afeta a Europa, recentemente a redução de oferta de magnésio chinês está afetando a indústria europeia, importação de magnésio da China representa 95% do todo importado.

Isso sem mencionar a escassez mundial de semicondutores, que se arrasta desde começo do ano devido aos novos surtos da Covid-19 no Sudeste Asiático, grande fabricante do produto, mas que também se agrava pelas sanções aplicadas pelos EUA ao microchip chinês, que além do mercado europeu, também impacta o japonês, coreano e de Taiwan.

E claro, os projetos da Nova Rota da Seda, que enfrentam resistência por questões ideológicas, muito embora Itália e Grécia tenham intensificado o volume dos acordos na área de infraestrutura com os chineses.

 

Eurásia

 

O termo Eurásia é uma união dos conceitos de Europa e Ásia, que são dois grandes continentes terrestres. Existem algumas formas de conceituar a Eurásia, mas a mais comum é aquela que considera que há um grande bloco de massa continental que engloba as porções europeia e asiática, formando um grande continente único.

O antagonismo entre as duas “partes” desse mesmo eixo remonta à Antiguidade e passa aos dias atuais com as políticas externas de “Rimland” e “Heartland”, por isso uma postura de desconfiança em relação às novas organizações eurasiáticas que vêm surgindo apesar de poder estabelecer bons negócios com seus vizinhos.

Organização de Cooperação de Xangai (OCX), Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) e Comunidade Econômica Eurasiana (CEE) são três das grandes iniciativas que estão tomando corpo e forma entre as nações asiáticas e quem podem ser muito bem incorporadas aos planos comerciais europeus.

 

Autonomia

 

Nas questões externas ficam ainda mais evidentes as bifurcações de estratégias e necessidades entre os EUA e a Europa, a relação de primeira importância de pelo menos cem anos precisará ser revista mais cedo ou mais tarde.

A Europa hoje está presa entre a espada e a parede. Terá talvez energia (e a humildade) para se olhar no espelho e reposicionar-se diplomaticamente? Para tanto, terá de alterar o modo como trata Rússia e China, à luz de uma análise de Realpolitik dos interesses e das capacidades europeias.

A abordagem de ficar em cima do muro não será mais viável, especialmente em vista do conflito entre os EUA e a China, que cada vez mais domina os assuntos mundiais.

 

Conclusão

O primeiro sinal de colapso desse pilar veio de Trump, ao falar da Europa como ‘rival’ e ameaçar com sanções a Alemanha pelo acordo do Nord Stream 2 com a Rússia. Houve também o acordo nuclear com o Irã, que ao rasga-lo, pouco se importou com a mediação e as vontades da Europa.

Agora, com a saída desastrosa de Cabul sem nenhum aviso ou ação conjunta com os europeus seguido do AUKUS, está nítido que os líderes europeus precisam sentar e começar um projeto do zero.

Há também a opção cômoda de continuar na coalizão sabendo que será um aliado de terceiro escalão e assim não se indispor com parcelas da população que ainda possuem a mentalidade de Guerra Fria.

Segundo pesquisa do ano passado feita pela Pew Research, 63% de espanhóis, 85% de suecos, 70% de franceses e 71% de alemães veem a China com visões negativas.

Mas esse caminho levará o continente a se limitar a ser uma península da Ásia com bons resultados econômicos e sociais que as vezes é atendido em algum pleito internacional, uma monarquia da península árabe com democracia.

O mundo de hoje é de multipolaridade desequilibrada, o que significa um ambiente de ameaça mais ambíguo para muitos Estados e uma gama de opções diferentes para grandes e médias potências

 

Referencias

 

J.L.Fiori, O poder global e a nova geopolítica das nações. Boitempo Editorial, São Paulo, 2007, p. 17

https://www.pewresearch.org/global/2020/10/06/unfavorable-views-of-china-reach-historic-highs-in-many-countries/

Os 100 anos do “Heartland”, o “Rimland” e a região em eterno conflito.

As estranhas derrotas de uma potência que não para de se expandir e acumular poder (por José Luís Fiori)

 

 

 

 

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