O documento conjunto da China e da Rússia que pretende encerrar essa era e iniciar outra
Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre as Relações Internacionais que entram em Nova Era e o Desenvolvimento Global Sustentável – 4/2/2022
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A Federação Russa e a República Popular da China, declaram o que segue:
Hoje, o mundo está passando por mudanças importantes, e a humanidade está entrando em nova era de rápido desenvolvimento e profunda transformação. O mundo vê o desenvolvimento de processos e fenômenos, como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e ordem mundial. Há crescente inter-relação e interdependência entre os Estados. Surgiu uma tendência à redistribuição do poder no mundo; e a comunidade internacional mostra demanda crescente por lideranças que visem ao desenvolvimento pacífico e gradual.
Alguns atores que, em escala internacional, representam a minoria continuam a defender abordagens unilaterais para questões internacionais e pregam o recurso à força; interferem nos assuntos internos de outros Estados, infringindo seus direitos e interesses legítimos; e incitam contradições, diferenças e confrontos, dificultando assim o desenvolvimento e o progresso da humanidade – atuando contra a oposição da comunidade internacional.
As partes pedem a todos os Estados que busquem o bem-estar para todos e, com esses objetivos, que construam o diálogo e a confiança mútua, fortaleçam a compreensão mútua, defendam valores humanos universais como paz, desenvolvimento, igualdade, justiça, democracia e liberdade; que respeitem os direitos dos povos, de determinar independentemente os caminhos de desenvolvimento dos próprios países, a soberania e os interesses de segurança e desenvolvimento dos Estados, para proteger a arquitetura internacional impulsionada pelas Nações Unidas e a ordem mundial baseada no direito internacional; que busquem a multipolaridade genuína, com as Nações Unidas e seu Conselho de Segurança desempenhando papel central e de coordenação.
Cabe exclusivamente ao povo de cada país decidir se o seu Estado é democrático. As partes observam que Rússia e a China, como potências mundiais com rica herança cultural e histórica, têm tradições democráticas de longa data, construídas a partir de milhares de anos de experiência de desenvolvimento, amplo apoio popular e consideração das necessidades e interesses dos cidadãos. Rússia e China garantem ao seu povo o direito de participar por vários meios e de várias formas na administração do Estado e da vida pública de acordo com a lei. Os povos de ambos os países confiam no modo como escolheram, e respeitam os sistemas democráticos e as tradições de outros Estados.
As partes observam que os princípios democráticos são implementados no plano global, assim como na administração do Estado. Tentativas de alguns Estados para impor seus próprios “padrões democráticos” a outros países, para monopolizar o direito de avaliar o nível de cumprimento de critérios democráticos, para traçar linhas divisórias com base na ideologia, inclusive estabelecendo blocos exclusivos e alianças de conveniência, são atos de desrespeito à democracia e vão contra o espírito e os verdadeiros valores da democracia. Essas tentativas para se impor como hegemônicos representam sérias ameaças à paz e estabilidade global e regional e minam a estabilidade da ordem mundial.
As partes acreditam que a defesa da democracia e dos direitos humanos não deve ser usada para pressionar outros países. Assim também se opõem a que se abuse dos valores democráticos e à interferência nos assuntos internos de Estados soberanos sob o pretexto de proteger a democracia e os direitos humanos, e a qualquer tentativa de incitar divisões e confrontos no mundo.
As partes pedem à comunidade internacional que respeite a diversidade cultural e civilizacional e os direitos dos povos de diferentes países à autodeterminação. As partes estão prontas a trabalhar em conjunto com todos os parceiros interessados em promover genuína democracia. As partes observam que a Carta das Nações Unidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelecem nobres objetivos na área dos direitos humanos universais, estabelecem princípios fundamentais, que todos os Estados devem cumprir e observar em seus atos.
Ao mesmo tempo, como cada nação tem suas próprias características nacionais únicas, sua história, cultura, seu sistema social e nível específico de desenvolvimento social e econômico, a natureza universal dos direitos humanos deve ser vista pelo prisma da situação real em cada país em particular. E os direitos humanos devem ser protegidos de acordo com a situação específica de cada país e as necessidades de sua população. A promoção e proteção dos direitos humanos é responsabilidade compartilhada da comunidade internacional. Os Estados devem dar importância igual a todas as categorias de direitos humanos e promovê-los de forma sistêmica.
As partes estão buscando avançar em seu trabalho para vincular os planos de desenvolvimento para a União Econômica Eurasiana (UEE) e a “Iniciativa das Rotas da Seda” (“Iniciativa Rota e Franja”; ou “Iniciativa Cinturão e Estrada”), com o objetivo de intensificar a cooperação prática entre a UEE e a China em várias áreas e promover maior interconexão entre regiões do Pacífico Asiático e Eurásia. As partes reafirmam seu foco na construção da Grande Parceria Eurasiática em paralelo e em coordenação com a construção das Novas Rotas da Seda para promover o desenvolvimento de associações regionais, bem como processos de integração bilateral e multilateral em benefício dos povos da Eurásia.
As partes fortalecerão a cooperação dentro de mecanismos multilaterais, incluindo as Nações Unidas, e encorajarão a comunidade internacional a priorizar questões de desenvolvimento na coordenação de macropolíticas globais. Pedem aos países desenvolvidos que implementem de boa-fé seus compromissos formais de assistência ao desenvolvimento, forneçam mais recursos aos países em desenvolvimento, tratem do desenvolvimento desigual dos Estados, trabalhem para compensar desequilíbrios internos nos Estados e façam avançar a cooperação global e internacional para o desenvolvimento.
As partes pedem à comunidade internacional que crie condições abertas, igualitárias, justas e não discriminatórias para o desenvolvimento científico e tecnológico, para intensificar a implementação prática dos avanços científicos e tecnológicos, a fim de identificar novos motores de crescimento econômico.
As partes estão seriamente preocupados com os graves desafios de segurança internacional e acreditam que os destinos de todas as nações estão interconectados. Nenhum Estado pode ou deve garantir a própria segurança separadamente da segurança do resto do mundo e à custa da segurança de outros Estados. A comunidade internacional deve engajar-se ativamente na governança global para garantir segurança universal, abrangente, indivisível e duradoura. As partes reafirmam o forte apoio mútuo à proteção de seus interesses centrais, soberania estatal e integridade territorial, e opõem-se à interferência de forças externas em seus assuntos internos.
Rússia e China posicionam-se contra as tentativas, empreendidas por forças externas, para minar a segurança e a estabilidade em regiões adjacentes comuns; pretendem combater a interferência de forças externas nos assuntos internos de países soberanos sob qualquer pretexto; opõem-se às revoluções coloridas; e aumentarão a cooperação nas áreas mencionadas.
As partes opõem-se à politização das questões de combate ao terrorismo e à utilização dessas questões instrumentos de política de duplicidade de critérios; condenam a ingerência nos assuntos internos de outros Estados para fins geopolíticos, mediante a utilização de grupos terroristas e extremistas, e sob o pretexto de que aqueles grupos estariam dando combate ao terrorismo e ao extremismo internacional. As partes acreditam que determinados Estados, alianças e coalizões militares e políticas buscam obter, direta ou indiretamente, vantagens militares unilaterais, em detrimento da segurança de outros, inclusive empregando práticas de concorrência desleal, intensificando a rivalidade geopolítica, alimentando o antagonismo e o confronto, e comprometendo seriamente a ordem da segurança internacional e a estabilidade estratégica global.
As partes opõem-se a alargamento ainda maior da OTAN e apelam à Aliança do Atlântico Norte para que abandone as abordagens ideologizadas da Guerra Fria; e respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países, a diversidade das suas origens civilizacionais, culturais e históricas e exerça atitude objetiva e justa em relação ao desenvolvimento pacífico de outros Estados. As partes opõem-se à formação de estruturas de blocos fechados e campos opostos na região da Ásia-Pacífico; e declaram que permanecem altamente vigilantes quanto ao impacto negativo da estratégia dos EUA para o Indo-Pacífico sobre a paz e estabilidade na região.
As partes estão seriamente preocupadas com a parceria de segurança trilateral entre Austrália, EUA e Reino Unido (ing. AUKUS), que prevê uma cooperação mais profunda entre seus membros em áreas que envolvem estabilidade estratégica, em particular a decisão dos estados AUKUS de iniciarem a cooperação na área de submarinos de propulsão nuclear. Rússia e China acreditam que tais ações são contrárias aos objetivos de segurança e desenvolvimento sustentável da região Ásia-Pacífico; que aumentam o perigo de uma corrida armamentista na região; e que criam sérios riscos de proliferação nuclear.
As partes condenam veementemente tais medidas e pedem aos participantes do grupo AUKUS que cumpram de boa-fé os seus compromissos de não proliferação nuclear e de mísseis; e que trabalhem juntos para salvaguardar a paz, a estabilidade e o desenvolvimento na região.
As partes acreditam que a retirada dos EUA do Tratado sobre a Eliminação de Mísseis de Alcance Intermediário e de Curto Alcance, a aceleração da pesquisa, e o desenvolvimento de mísseis terrestres de alcance intermediário e curto e o desejo de implantá-los nas regiões do Pacífico Asiático e da Europa, bem como a transferência dessas armas para aliados, acarretam aumento da tensão e desconfiança; aumentam os riscos para a segurança internacional e regional; levam ao enfraquecimento do sistema internacional de não proliferação e controle de armas, minando a estabilidade estratégica global.
As partes apoiam a parceria estratégica aprofundada dentro do BRICS, e promovem a cooperação ampliada em três áreas principais: política e segurança, economia e finanças e intercâmbios humanitários. Em particular, Rússia e China planejam incentivar a interação nos campos da saúde pública, economia digital, ciência, inovação e tecnologia, incluindo tecnologias de inteligência artificial, bem como a maior coordenação entre os países do BRICS em plataformas internacionais.
Rússia e China querem fortalecer de forma abrangente a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e aprimorar ainda mais o seu papel na formação de uma ordem mundial policêntrica baseada nos princípios universalmente reconhecidos do Direito Internacional, do multilateralismo e da segurança igual, conjunta, indivisível, abrangente e sustentável.
Rússia e China continuarão a trabalhar para fortalecer o papel da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (ing. APEC) como plataforma líder para o diálogo multilateral sobre questões econômicas na região do Pacífico Asiático. As partes trabalham para desenvolver a cooperação no formato “Rússia-Índia-China”, bem como para fortalecer a interação em locais como a Cúpula do Leste Asiático, Fórum Regional de Segurança da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ing. ASEAN), Reunião de Ministros da Defesa dos Estados Membros da ASEAN e Parceiros de Diálogo.
Rússia e China apoiam o papel central da ASEAN no desenvolvimento da cooperação no Leste Asiático, continuam a aumentar promover a coordenação no aprofundamento da cooperação com a ASEAN e promovem conjuntamente a cooperação nas áreas de saúde pública, desenvolvimento sustentável, combate ao terrorismo e combate ao crime transnacional. As partes continuarão a trabalhar a favor de garantir papel reforçado à Associação de Nações do Sudeste Asiático (ing. ASEAN), como elemento-chave da arquitetura regional.
Reflexões:
Chama atenção nesse documento a sua defesa de alguns valores muito caros ao “sistema de westfália”, como é o caso de sua defesa intransigente da soberania nacional, e do direito de cada povo decidir seu próprio destino, desde que respeitado o mesmo direito de todos os demais povos. Destaca-se também o chamado a uma ordem internacional baseada em leis, entusiasmo pela globalização econômica e pelo multilateralismo, entre outros pontos.
O Prof Fiori alega que: “o documento russo-chinês lembra muitas vezes o idealismo internacionalista de Woodrow Wilson, tanto quanto lembra, em outros momentos, o idealismo nacionalista de um Charles de Gaulle.”
Outra parte interessante é o não reconhecimento de um modelo único de forma de governo como se fosse uma verdade revelada por Deus, com isso, cria-se uma crítica forte ao “Destino Manifesto”, documento que expressa o caráter divino e excepcional da sociedade estadunidense.
Ele bate forte também no eurocentrismo ao invocar que nenhuma nação é superior a outra, diversas ilhas e países ainda funcionam em uma lógica colonial. Portanto, ele exige o fim da lógica imperial do “universalismo expansivo”,
O que faz a diferença nesse documento não é seu multiculturalismo; é o fato de que este multiculturalismo aparece aqui como uma reivindicação e uma proposta universal apresentada e sustentada pela segunda maior potência atômica do mundo, e pela segunda maior economia de mercado do mundo.
Retomo aqui o conceito de povo-civilização que países de história milenar estão desenvolvendo para se contrapor ao estado-nação que surgiu na Europa. Irã, China e Rússia encabeçam esse movimento, e esse documento vai de encontro a isso.
Outro modelo louvável é o de “Estado plurinacional” que nasceu na Bolívia e agora o Equador também adere, pode parecer bobagem, mas ao afirmar constitucionalmente que você pertence a outro modelo que não o Estado-nação, em tese você enfraquece certos discursos extremados de tentativa de imposição de unidade nacional.
O plurionacional remete à singularidade latina de soma de etnias, diásporas de diversos tempos com os nativos que existiram somente aqui, afastados do mundo, e ao mesmo tempo ataca um pensamento colonial, que pode ser considerado como um dos pilares do fracasso europeu, essa necessidade de unidade a todo custo pode ser vista como a grande responsável por haver tantas pequenas nações nesse continente e tantos conflitos ao longo de sua história.
Referências
http://en.kremlin.ru/supplement/5770
https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/fiori-mudanca-a-vistana-geopolitica-global/
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